A dança das cadeiras, nestas legislativas, fez-se à direita
12-02-2024 - 09:00
 • Ana Kotowicz , Filipa Ribeiro , Isabel Pacheco

Não é a primeira vez que deputados trocam uma força política por outra, mas, à beira das eleições, as transferências para o Chega são a maioria.

Na ponta do icebergue está o Chega e os nomes daqueles que saíram do PSD e da Iniciativa Liberal para se juntarem ao partido de André Ventura. Mas, tal como nas enormes massas de gelo, à superfície vê-se apenas uma parte da história. Mudanças de partidos não são novas na história da democracia, embora nestas legislativas de 10 de março, a grande dança de cadeiras se tenha feito à direita e de forma mais abrupta do que é habitual.

O politólogo António Costa Pinto considera que tudo isto é normal. Aliás, não faltam exemplos, quer nacionais quer internacionais. No Brasil, recorda à Renascença, “cerca de 20% dos deputados do congresso brasileiro, uma vez eleitos, mudam de partido”.

Em Portugal, o nascimento do Bloco de Esquerda em 1999 - uma fusão de três forças próximas, a UDP, o PSR e o Política XXI - gerou várias situações semelhantes. “Vários jovens dirigentes do PCP fundaram o Bloco de Esquerda e alguns ministros socialistas chegaram a ser dirigentes do PCP. Foi de forma mais discreta, mas aconteceu”, lembra Costa Pinto.

Miguel Portas, por exemplo, foi militante na União dos Estudantes Comunistas, o braço universitário do PCP, fez parte do Plataforma de Esquerda, formado por dissidentes comunistas, e, depois do Política XXI, já no Bloco de Esquerda, foi eleito eurodeputado pela primeira vez em 2004. Outro histórico dirigente bloquista, João Semedo, chegou a fazer parte do Comité Central do PCP, de onde se demitiu em 1991 (abandonaria o partido em 2000). Seria co-coordenador do Bloco de Esquerda, na chamada liderança bicéfala, dividida com Catarina Martins, entre 2012 e 2014.

O que acontecia com o Bloco de Esquerda no início dos anos 2000, acontece agora com o Chega, partido fundado em 2019, exatamente 20 anos depois do nascimento do BE. Os novos partidos tendem a ser um chamariz para aqueles que estão cansados ou já não se reveem nos partidos de origem, explica o politólogo.

“É natural” que venham a existir mais trocas, além das que já são conhecidas, diz Costa Pinto. “Quando existe um aumento da oferta, à direita ou à esquerda, os dirigentes de concelhias ou de distritais de um partido - que, de algum modo, veem o seu futuro político cortado nesse partido -, aproveitam a estrutura de oportunidade” para ir para uma nova organização partidária, defende.

Os motivos são vários e António Costa Pinto associa estas trocas a fatores como a profissionalização política, ou a alterações de liderança dos partidos, ainda mais num momento - como o atual - em que é necessário criar listas de candidatos. Apesar das trocas já enumeradas, o politólogo defende que “este movimento ainda é relativamente pequeno em Portugal”.

Maló de Abreu, Rui Cristina e mais uma mão cheia de nomes

Maló de Abreu foi o primeiro nome que, à beira da oficialização das listas de candidatos, surgiu como uma potencial transferência entre partidos. A 11 de janeiro, André Ventura recusava confirmar o nome, mas deixava antever que algo se iria passar.

"Há vários nomes, sobretudo ligados ao PSD, naturalmente pela proximidade maior, que estarão nas listas do Chega às próximas legislativas", dizia no Parlamento, em declarações aos jornalistas.

Sobre as eventuais transferências, Ventura recusou que estivesse em curso um processo de recrutamento junto a qualquer outra força política. "Não é nenhum ataque à estrutura do PSD, nem a nenhum partido. São pessoas que se aproximaram, com quem tivemos contactos, cujos trabalho parlamentar ou ex-parlamentar apreciámos e chegámos à conclusão que podiam ser mais-valia para o partido.”

O caso de Maló acabaria por tomar um curso bem diferente, depois da polémica relacionada com o alegado recebimento indevido de ajudas de custo por ter declarado que a sua morada habitual era em Luanda. Afastou-se das listas e Ventura mostrou que o partido também já não estava de braços abertos para recebê-lo.

Se Maló acabou por ficar no banco, outros nomes foram a jogo. Manuel Magno - o segundo nome da lista do PSD pelo círculo Fora da Europa em 2022 - tornou-se cabeça de lista do Chega, nesse mesmo círculo, ficando com o lugar que, inicialmente, estava reservado a Maló de Abreu.

Outra história que fez correr tinta foi a de Rui Cristina. Ao fim de 20 anos no partido, o deputado do PSD acabou a legislatura como não inscrito e anunciou, no final de janeiro, que deixaria o partido para se juntar ao Chega. Ali, esperava-o um lugar no topo: cabeça de lista em Évora, quando Montenegro lhe tinha oferecido o quinto lugar na lista do PSD de Faro, depois de nas legislativas anteriores ter sido o número dois.

Se Rui Cristina estava no PSD há 20 anos, Eduardo Teixeira estava há 30, onde liderou tanto a concelhia como a distrital de Viana do Castelo. Nos primeiros dias de fevereiro, desfiliou-se do PSD, mantendo-se como vereador da câmara de Viana do Castelo como independente. A 10 de março, será o cabeça de lista do Chega naquele mesmo distrito como independente.

Outra transferência de peso foi a do antigo secretário de Estado da Defesa de Durão Barroso, Henrique Freitas, que abandonou o partido em 2023. Tornou-se militante do Chega e é agora o número um do partido de André Ventura em Coimbra. Antes disso, em 2010, Henrique Freitas integrou a Comissão de Honra da candidatura de Manuel Alegre, histórico socialista, à Presidência da República.

Sem o mesmo efeito surpresa dos nomes anteriores, em Vila Real, a lista do Chega é encabeçada por Manuela Tender, como tinha acontecido em 2022. Deputada eleita pelo PSD (2011- 2019), desfiliou-se em 2020, por divergências com a distrital do partido. Esta escolha não foi, no entanto, bem recebida nas estruturas do Chega e, em comunicado, a distrital de Vila Real disse ter uma "discordância em absoluto" com a escolha feita para 10 de março.

Outro caso, é o de António Pinto Pereira, que trocou o PSD pelo Chega no ano passado, e que é cabeça de lista por Coimbra.

No distrito de Guarda, a lista do Chega é encabeçada não por um antigo social-democrata, mas por um ex-militante da Iniciativa Liberal. Nuno Simões de Melo, que liderou a ala conservadora dos liberais na última convenção do partido, deixou o IL em abril (em conjunto com outros 12 dirigentes). O motivo? A IL apoiou um projeto de lei do PS e absteve-se num do Bloco de Esquerda, ambos sobre o direito à autodeterminação de género nas escolas.

Em entrevista ao Expresso, Simões de Melo chegou a dizer que esperava ver outros dissidentes da IL juntar-se ao partido de Ventura.

Quando o retrato de Freitas do Amaral saiu do Caldas para o Largo do Rato

As histórias de mudança de partido não começaram agora. Em 2005, quando José Sócrates convidou Freitas do Amaral, fundador do CDS, para integrar o governo socialista como ministro dos Negócios Estrangeiros, caiu o Carmo, a Trindade e o Largo do Caldas.

Embora o seu tempo à frente da diplomacia portuguesa tenha sido curto - devido à sua posição crítica sobre a publicação de 12 caricaturas de Maomé num jornal dinamarquês -, foi suficiente para causar profundo mal-estar entre os centristas, que já tinham tido dificuldade em aceitar que o fundador do partido surgisse em comícios do Bloco de Esquerda.

Ainda antes de Freitas tomar posse, o então secretário-geral do partido, Pedro Mota Soares, mandou retirar o retrato do fundador da sede do partido, no Largo do Caldas, e enviou-o para o Largo do Rato, sede do PS, em Lisboa.

Freitas do Amaral não foi o único fundador a deixar o CDS. Em 2011, também Basílio Horta regressou à política ativa como cabeça de lista por Leiria, mas com o apoio do PS. Na altura, explicou que estava afastado do partido há nove anos, mas que tinha sido uma “separação amigável”.

“Se calhar não sabiam que dos fundadores do partido, creio, nenhum deles está neste momento no partido”, dizia então, comentando o espanto dos militantes socialistas ao verem o seu nome nas listas elaboradas por Sócrates. Seria também o PS a apoiá-lo na candidatura à Câmara Municipal de Sintra, autarquia que lidera até hoje.

Já no PSD, um caso mais recente de corte com o partido foi o de Pedro Santana Lopes. Em agosto de 2018, abandonou a casa social-democrata onde cresceu e fundou o partido Aliança - acabaria por desfazer também esse segundo casamento, pouco tempo depois, em 2021.

Cortar com um partido, nem sempre é sinónimo de arranjar um novo: Paulo Trigo Pereira, eleito como independente nas listas do PS (tinha sido militante do extinto Movimento de Esquerda Socialista), anunciou em 2018 que ia deixar a bancada socialista e passar a deputado não inscrito até ao fim do mandato. Até hoje, não escolheu nova casa, e está afastado da política ativa (mas não do comentário).

Em 2021, houve outros dois casos semelhantes, mas com desfecho diferente: Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira, deputadas únicas eleitas pelo PAN e pelo Livre, respetivamente, terminaram o mandato como deputadas não inscritas.

Depois do chumbo do Orçamento do Estado a 27 de outubro, e consequente queda do Governo, Joacine Katar Moreira retirou-se do parlamento e da vida política. Cristina Rodrigues mudou-se para o gabinete parlamentar do Chega, ganhou peso no núcleo duro do partido, e agora é número três pelo círculo do Porto.

O Chega tem um íman que os outros não têm?

Se há casos em todos os quadrantes políticos, por que motivo, nestas legislativas, apenas o partido de André Ventura parece ser capaz de atrair militantes dos adversários?

“O Chega, partido de direita radical populista, tem uma estratégia de crescimento eleitoral que só pode ser feita à custa, não só de novos eleitores, mas de eleitores de outros partidos de direita”, argumenta o politólogo António Costa Pinto.

Desde logo, sublinha aquilo que é do conhecimento público: “Sabemos que, no caso do Chega, existe algum eleitorado do CDS e algum eleitorado do PSD que manifesta intenções de votar” no partido liderado por Ventura.

Outra explicação para as saídas, argumenta Costa Pinto, está relacionada com a juventude dos partidos, onde os militantes saem como forma de contestar lideranças - é o caso da Iniciativa Liberal, que viu a deputada Carla Castro bater com a porta, depois de a direção de Rui Rocha lhe ter oferecido o sétimo lugar por Lisboa (elegibilidade quase impossível).

“É natural que existam, fundamentalmente à direita, algumas transferências de pessoal político de uns partidos para os outros”, diz o politólogo, frisando que o mais comum é que o movimento aconteça dos partidos mais antigos para os mais recentes. António Costa Pinto explica que raramente a dinâmica acontece ao contrário, por exemplo, sair-se da Iniciativa Liberal ou do Chega para o PSD.

Já à esquerda, as movimentações são menores nos tempos atuais devido a terem estruturas partidárias mais antigas - no entanto, isso também aconteceu no passado.

Nas listas para 10 de março, tirando as transferências para o Chega, as mudanças são poucas, até mesmo entre cabeças de lista, dos demais partidos.

O que dizem os que saem

Nuno Afonso chegou a ser vice-presidente do Chega e foi chefe de gabinete de André Ventura. Atualmente, e depois de ter abandonado o partido, é vereador independente em Sintra. Além disso, é candidato da Alternativa 21, uma coligação dos partidos MPT e Aliança - aquele que Santana Lopes fundou e que tem outro antigo deputado social-democrata na liderança, Jorge Nuno Sá.

À Renascença, o fundador do Chega acusa o partido de Ventura de desorganização e de falta de democracia: “Um partido que não consegue ter organização, que não consegue respeitar pessoas com ideias diferentes dentro do partido, que não consegue apresentar uma proposta e discuti-la de forma séria na Assembleia da República, e muito menos aprová-la, mais do que arrogante, é um partido que não serve para grande coisa.”

Nuno Afonso, muito crítico do partido que deixou, afirma que se soubesse o caminho que estava à sua frente, teria tomado outras decisões. “Provavelmente não teria estado na génese do Chega”, diz, acusando o partido de fazer “barulho e não propriamente oposição”.

O dedo acusador também é apontado ao líder do Chega que considera “ter poder total sobre o partido” e de “ignorar leis e o Tribunal Constitucional” para fazer tudo como entende. “Ele comete ilegalidades atrás de ilegalidades, impedindo que qualquer pessoa se candidate contra ele, para conseguir aqueles resultados que parecem a Coreia do Norte. E todas as pessoas que eram capazes de lhe dizer ‘não’ saíram do partido”, acusa Nuno Afonso.

Opinião distinta tem quem fez o percurso oposto. “Churchill foi um grande estadista e disse que teve de mudar de partido para não mudar as suas ideias. Faço essa referência porque não deixo de ser um social-democrata”, diz à Renascença Eduardo Teixeira, recordando que, tal como ele, também André Ventura, para quem só tem elogios, foi militante do PSD.

Sobre a sua saída, Eduardo Teixeira volta a usar o nome do estadista britânico, que liderou o governo do Reino Unido durante a II Guerra Mundial, mesmo que indiretamente. “Não vou voltar a citar Churchill, mas o rumo que o PSD está a ter nos últimos tempos, na forma como faz oposição e como se aproxima dos cidadãos, tem-me preocupado”.

O agora vereador independente em Viana do Castelo critica a forma como são construídas as listas, argumentando que o PSD, “com as alterações que fez, escolhe três quartos da lista de deputados”, ou seja, “em teoria, escolhe a totalidade dos seus eleitos". Além disso, discorda das opções estratégicas que estão a ser tomadas, como a decisão categórica de Luís Montenegro de afastar uma coligação com o Chega.

“Não posso aceitar que a alternativa ao PS seja o próprio PS”, defende Eduardo Teixeira, deixando claro o que espera do pós-eleições. “Se o povo ditar que o centro-direita tem uma maioria, os interesses do país têm de ser postos acima de tudo.”