Devemos manipular os genes das nossas filhas?
17-04-2017 - 09:00

Os alarmes contra a genética devem permanecer ligados. Os “avanços genéticos” podem ser retrocessos civilizacionais.

Chamemos-lhe Ana. A sua avó teve cancro da mama, a sua mãe teve cancro da mama, ela vai ter cancro da mama – é quase tão certo como o pôr do sol. Pensa em engravidar, mas tem medo de passar esta sentença genética às filhas. É por isso que está atenta aos avanços genéticos. E se for possível não ter filhas? E se for possível através da tecnologia escolher um menino? E se for possível desenvolver um embrião feminino completamente livre do defeito genético que provoca o cancro da mamã? Ana é católica e todos os seus alarmes morais disparam assim que se fala em genética. O homem não pode fingir que é Deus. Mas, por outro lado, ela não consegue sair daquele pavor: porque é que vou gerar meninas que têm 50% de possibilidades de desenvolver cancro?

Repare-se que a questão de Ana já não é “podemos manipular os genes dos nossos filhos?”. Já saímos do campo da possibilidade. Estas e outras tecnologias já existem e estão disponíveis no mercado. A única questão que resta está no campo da legitimidade: “devemos manipular os genes dos nossos filhos?” Devemos? Temos esse direito? Compreendo o medo de Ana, também o sinto, mas este caminho é demasiado movediço. Sim, percebo que há uma diferença entre medicina e eugenia; há uma diferença moral entre uma intervenção genética que visa suprimir uma doença que aquele bebé tem altíssima probabilidade de desenvolver (medicina) e uma intervenção que visa aumentar capacidades físicas e intelectuais desse bebé (eugenia). Pode-se fazer este argumento. No entanto, esta solução tem sempre um lado perverso: se abrimos a porta a essa genética defensiva, abrimos também as portas à genética ofensiva e eugenística que procurará aumentar a inteligência e a potência física. É uma caixa de pandora. Uma vez aberta, não se pode fechar. Aliás, ela já foi aberta e já se fala abertamente na criação de um mundo pós-humano através de uma eugenia bem intencionada. Sucede que não existe uma eugenia bem intencionada, só existe eugenia.

Os alarmes contra a genética devem permanecer ligados. Os “avanços genéticos” podem ser retrocessos civilizacionais. Retrocessos, esses, que estão a ser debatidos debaixo da nossa complacência moral. Aqueles que abriram a caixa já falam na introdução de nanotecnologia e de fármacos avançados que visam o aumento das capacidades físicas e mentais logo na fase de embrião (ex.: aumentar memória, aumentar velocidade de raciocínio). O problema é que isto representa a criação de um homem ex nihilo a partir da vontade do próprio homem. Não me parece uma utopia que liberta o homem do calvário das doenças, parece-me mais uma distopia eugenística que transforma o homem num produto manufacturado em laboratório. Ora, a civilização que construímos assenta numa verdade revelada no Evangelho: todos os homens são iguais entre si porque são todos filhos de Deus. Somos todos irmãos. Este futuro pós-humano e eugenístico pode quebrar essa irmandade, pois tem o poder para nos dividir em duas esferas: os homens naturais e os homens artificiais. Portanto, o medo da Ana é compreensível, mas também é perigoso. Naquele amor esconde-se esta distopia eugenista.

O pavor de Ana esquece ainda dois pormenores adicionais. Em primeiro lugar, a medicina normal avançou no tratamento do cancro, que será cada vez mais uma doença crónica controlável. Em segundo lugar, a genética não é destino, é apenas probabilidade. Dizer que “é provável que a Ana e a suas filhas desenvolvam cancro” não é o mesmo que dizer “é garantido que desenvolvam cancro”. 50% não são 100%. Não podemos perder a esperança no futuro. Caso contrário, chegará um momento em que nenhuma possibilidade de doença será aceitável. Caso contrário, chegará o momento em que as pessoas exigirão um futuro pós-humano só porque têm 10% de hipóteses de desenvolver doença x ou y. Não quero viver nesse futuro que me parece um nazismo delicodoce.