“Kosovo, a grande mentira". Militar português recorda experiência vivida há 20 anos
20-11-2019 - 15:55
 • Ana Rodrigues

O major-general Raul Cunha vem a público expor, em livro, aquilo a que chama “uma mentira do Ocidente para justificar interesses estratégicos“.

Vinte anos após o bombardeamento da antiga Federação Jugoslava pela NATO, o major-general Raul Cunha vem a público expor aquilo a que chama “uma mentira do Ocidente para justificar interesses estratégicos“.

O livro com o título” Kosovo - a Incoerência de uma Independência Inédita” conta com testemunhos, quase sempre vividos na primeira pessoa, naquele teatro de guerra, entre 1991 e 2009, onde Raul Cunha esteve ao serviço da Comunidade Europeia, da NATO e da ONU.

Raul Cunha, então conselheiro especial do secretário-geral da ONU no Kosovo, não tem dúvidas de que o novo país é “um Estado falhado que apenas consegue sobreviver à custa de apoios internacionais e negócios do ferro-velho”.

Nesta obra com informação que foi recolhendo ao longo dos anos, o militar sublinha que a intervenção da NATO foi “inédita, porque violar-se a soberania de um país com o argumento humanitário suscita algumas dúvidas”; pelo que é legítimo questionar “se que aquilo não foi mais uma desculpa, porque há interesses estratégicos em jogo”.

Raul Cunha dá a resposta à questão, de modo claro: “Eu acredito que foi isso, porque não podemos esquecer que coincidiu com o 50.º aniversário da NATO e a organização estava a perder relevância com o fim da guerra fria. E encontrou ali justificação para o seu emprego.”

Lembra este antigo juiz militar que, “quando são feitas as conversações de paz, os sérvios não assinaram porque foi introduzida uma cláusula que permitia à NATO fazer o que quisesse no território da ex-Jugoslávia - e isso, como é obvio, os sérvios não podiam aceitar”.

“Para mim, essa cláusula foi introduzida, claramente, para sabotar o acordo e permitir a intervenção da NATO”, adianta.

Questionado sobre se tinha essa perceção quando estava no terreno, Raul Cunha diz que “os militares portugueses que passaram pelos Balcãs sempre perceberam que aquela política do bom e do mau era falsa. Não era a realidade”.

"Só os sérvios é que violaram, que mataram? Não. Eles eram todos maus, essa é que é a verdade. Todos cometeram crimes."

Esclarecendo ter “dois filhos meio-portugueses, meio-croatas”, o antigo paraquedista refere que “as piores coisas foram feitas foi por croatas e por albaneses.”

“Vi um homem sérvio assado no espeto. Isso não consigo esquecer”

“É preciso dizer que há muita gente boa na Sérvia” e “nós criticamos o outro lado, mas depois fazemos o mesmo. É que os bombardeamentos acionados pela NATO provocaram, pelo menos, 500 mortes de civis – mais do que as provocadas por Slobodan Milosevic, o líder sérvio, condenado num tribunal internacional”, aponta.

"Temos um tribunal dos vencedores, a julgar os vencidos e a atribuir-lhes todos os males. O Tribunal Penal de Haia quanto a mim foi uma farsa.”

Questionado sobre se vive tranquilo por ter participado “na grande mentira”, Raul Cunha diz que sim. “Enquanto militar cumpria ordens", mas "sempre disse o que pensava”, acrescenta.

Lembrando que "a resolução n.º 1244 das Nações Unidas ainda está em vigor”, Raul Cunha sublinha que o diploma refere que "o Kosovo deve ter instituições de autogoverno, mas que é território da Sérvia.” Ou seja, o Kosovo não foi reconhecido por todos os países das Nações Unidas e Portugal só o fez mais tarde”.

Apesar de tudo, o major-general garante que “foi sempre frontal e que chegou por isso a ser repreendido pelo governo português, devido a uma entrevista" que, quando esteve ao serviço das Nações Unidas, deu ao jornalista da Renascença José Pedro Frazão.

Questionado sobre se, com o reconhecimento da independência do Kosovo, as tropas portuguesas no terreno não poderiam ficar em perigo, Raul Cunha admite que sim, era uma possibilidade. E isso concretizou-se, garante, “quando fomos recebidos à pedrada pelos sérvios na fronteira. E houve militares portugueses que ficaram feridos. Essa é verdade”.