A fenda por onde entra a luz
23-11-2018 - 06:46

"A sociedade do Tinder e do 'Casados à Primeira Vista', obcecada com o controlo e incapaz de aceitar o acaso do amor, só pode ser a sociedade do suicídio, que, não por acaso, está a subir em todas as idades, géneros e nações".

Tenho pensado bastante na personagem principal do romance de Dulce Garcia, “Quando perdes tudo não tens pressa de ir a lado nenhum”. Esta mulher, Isabel, vive no aeroporto há um ano. Está à espera do homem que ama. Ele há-de vir, diz. A maioria das pessoas, seguindo as convenções, diz que ela enlouqueceu. Pois bem, a força do romance está precisamente aqui: Dulce Garcia mostra que Isabel é mais livre e racional do que muitas pessoas que fazem coisas “óbvias” e “sensatas” como tentar encontrar a paixão numa aplicação de telemóvel. Isabel sabe o que os utilizadores do Tinder não sabem: nós não controlamos racionalmente a ignição da paixão; esse poder misterioso está fora da nossa soberania. Quem pensar o contrário, isto é, quem pensar que pode planear uma relação da mesma forma que planeia uma carreira ou evento, precisa de passar por um hospício, porque é mais louca do que Isabel.

Foi um acaso curioso: li em simultâneo este romance e o ensaio de Nassim Taleb “O Cisne Negro”. Casam bem. O cisne negro é o imprevisto, o acontecimento-surpresa que muda tudo. Todos os grandes eventos da história, da queda do muro de Berlim a Trump, passando pelo 11 de Setembro, foram inesperados. Ninguém estava à espera. Ninguém. Contra a nossa vontade, voltamos sempre a Eclesiastes: o nosso controlo sobre a roda da história é reduzido. Ora, como recorda Taleb, o cisne negro também marca a vida pessoal de cada um de nós. Aos 40, são poucas as pessoas que estão a fazer profissionalmente aquilo que planearam aos 20. Passa-se o mesmo com o amor, que é, aliás, o grande cisne negro. Isabel não escolheu apaixonar-se por Afonso olhando para um catálogo de vinte homens oferecido pelo ecrã do telemóvel. O nascimento de uma paixão é um momento impossível de antecipar, prever, controlar. Se fosse um banalíssimo cisne branco, o amor já estaria à venda nas farmácias (ou no Tinder, ou no "Casados à Primeira Vista"). Este mistério da paixão é um cisne tão negro como o mistério da doença: se a fonte de muitos males (autismo, por exemplo) é de uma injustiça inescrutável que nos leva sempre a Job, a fonte do bem (amor) é também de uma bondade insondável. Contudo, apesar desta evidente imprevisibilidade, as livrarias e televisões estão cheias de livros e programas com a palavra falaciosa: controlo; controlo sobre o corpo, sobre a vida, sobre a carreira, sobre os filhos, sobre a vida amorosa. Fenómenos como o Tinder e "Casados à Primeira Vista" resultam desta sociedade obcecada com o controlo total e racional; é como as outras pessoas, a começar na pessoa amada, tivessem de ser títeres agarrados aos nossos dedos omnipotentes.

Mas não é esta história demasiado inverosímil? Uma mulher que vive no aeroporto à espera de um homem que há-de chegar? A resposta tem duas faces. Primeira: o romance baseia-se numa história real; aconteceu mesmo algo parecido. Segundo: mesmo que fosse totalmente ficcional, a história teria sempre força, porque todas as histórias de amor têm esta lado inverosímil, louco e livre. Sim, livre; a liberdade de seguir a nossa consciência e não as convenções: “há uma liberdade imensa em ir contra tudo o que é suposto", diz Isabel. "É uma espécie de reconciliação com a nossa vontade que se torna tão mais gratificante quanto maior o número de regras que se infrinjam”. Olhem à vossa volta, pensem nos casamentos dos vossos pais, irmãos, primos, vizinhos e amigos. Todos sem excepção começaram numa paixão inesperada e não planeada. Portanto, uma mulher que planeia apaixonar-se por este e não por aquele não precisa de um vestido de casamento, precisa de uma camisa de forças, porque está de facto à beira de quebrar, porque não percebe dois pontos que qualquer criança aprende logo na catequese. Primeiro, é falacioso pensar que podemos recriar um ecossistema controlado na totalidade pela nossa vontade. Segundo, não existe essa coisa do par ou mulher/homem perfeito. Um homem obcecado com a mulher perfeita e que, por essa razão, lá vai descartando dezenas de pretendentes imperfeitas é um homem que não entende que não há amor sem falhas e fragilidades. Como dizia Cohen, é pelas fendas que a luz entra:

Forget your perfert offering

There is a crack in everything

That’s how the light gets in


Sim, usar o Tinder e entrar no “Casados à Primeira Vista” coloca uma pessoa mais próxima da loucura do que esperar um ano no aeroporto. "Quando perdes tudo, não tens pressa para ir a lado nenhum", diz Isabel. "Por isso ali fiquei semanas, quase um ano. Acreditem se quiserem mas não enlouqueci, pelo contrário: fiquei ali para não enlouquecer. Tudo aquilo não podia ser mentira. E se fosse, a minha vida era um engano e tinha de acabar com ela“. Não finalizo com esta citação por acaso. A sociedade do Tinder e do "Casados à Primeira Vista", obcecada com o controlo e incapaz de aceitar o acaso do amor, só pode ser a sociedade do suicídio, que, não por acaso, está a subir em todas as idades, géneros e nações. Chesterton dizia qualquer coisa como isto: uma sociedade obcecada com a total autonomia do indivíduo é uma sociedade que vai encher manicómios. Neste caso, estamos a encher cemitérios.