Senhor dos Passos não sai à rua pela primeira vez desde 1587. "Vamos adaptar-nos"
23-02-2021 - 08:49
 • Dina Isabel e António Freire (entrevista), com Francisca Favila (transcrição)

Este ano não haverá a tradicional procissão por Lisboa, mas mantém-se a missa a 28 de fevereiro, com transmissão na Renascença. ​Entrevista com Francisco Mendia, provedor da Real Irmandade da Santa Cruz e Passos da Graça.

Não estivéssemos nós em situação de pandemia e no próximo domingo, o segundo da Quaresma, a procissão do Senhor dos Passos da Graça sairia para percorrer as ruas de Lisboa juntando, como é habitual, centenas de pessoas.

Esta procissão tem raízes seculares. Evoca a paixão e morte de Jesus Cristo, retratando a Via Sacra de Jerusalém, e teve início em 1587. Na realidade, é a primeira Procissão dos Passos, é precursora de muitas outras espalhadas pelo país e pelo mundo: Timor, Índia ou Brasil, só para dar alguns exemplos.

Esta manifestação de fé, que é habitualmente a primeira em tempo de Quaresma, acabou por ser a última realizada o ano passado, já que teve lugar poucos dias antes de ser decretada a pandemia. Na altura, a Conferência Episcopal tomou a decisão de cancelar todas as cerimónias religiosas presenciais, situação que se voltou a repetir em janeiro deste ano devido à gravidade dos números de contágio da Covid-19.

Este ano, a Real Irmandade da Santa Cruz e dos Passos da Graça, entidade responsável desde o primeiro dia por este cortejo, que se realiza tradicionalmente no segundo domingo da Quaresma, vai assinalar esta data, embora de forma diferente, explica em entrevista à Renascença o provedor da Irmandade, Francisco Mendia.

É a primeira vez que a procissão não pode sair à rua em vários séculos. Qual é o sentimento?

De facto, para nós é motivo duma grande tristeza, mesmo compreendendo que não podemos fazer as coisas como fazíamos todos os anos. Esta Irmandade existe desde 1586 e fazemos sair esta procissão desde 1587, ininterruptamente. Portanto, para nós, é motivo duma grande tristeza, mas iremos adaptar-nos.

No próximo domingo, pelas 11h00, teremos uma missa que será presidida por D. Américo Aguiar, bispo auxiliar de Lisboa. O senhor D. Américo, no final da missa, irá dar a habitual bênção à cidade de Lisboa, no Largo da Igreja da Graça: sairá e dará essa bênção.

Esta será uma missa transmitida das formas a que estamos habituados e como é possível agora: será transmitida pela Renascença e por vários canais digitais – nomeadamente os canais da Irmandade, os canais da Ecclesia, os canais do Patriarcado e os próprios canais da Renascença, entre outros canais de comunicação que se vão associar também a esta cerimónia. É o possível este ano.

Esta procissão tem, de resto, uma grande ligação à cidade de Lisboa.

É verdade. Muito desde o seu início o povo de Lisboa aderiu muito a esta devoção que nós temos ao Senhor dos Passos e é uma procissão que atravessa o coração de Lisboa: estamos a falar duma procissão que sai da Igreja de São Roque e vai até à Igreja da Graça, são perto de três quilómetros.

Esse é o percurso maior, porque já teve um percurso menor, não foi?

É, depois de 1910, com a implantação da República e as perseguições à Igreja, a Irmandade decidiu fazer uma procissão mais pequena, mais recatada, por assim dizer. Nós só retomámos em 2013 a procissão original, havendo uma única exceção em 1987, por ocasião dos 400 anos da Irmandade, em que se fez a procissão grande novamente. Mas só retomámos em 2013 a procissão no seu tamanho original.


O que é que se conjugou nessa altura, para isso ser possível?

Foram vários fatores. A Irmandade cresceu bastante em número de irmãos. Houve uma nova vaga de irmãos. Todos os anos admitimos 30 ou 35 novos irmãos, portanto houve um crescimento muito grande nessa altura, o que nos permitiu levar todas as alfaias da procissão. Só para dar uma pequena ideia, o andor do Senhor dos Passos tem de ser carregado por dez homens; o pálio, onde vai o senhor cardeal patriarca, é carregado por oito pessoas.

Em caminhos que não são fáceis, porque Lisboa é a cidade das sete colinas...

Em caminhos que não são fáceis, sobretudo a subida da Calçada dos Cavaleiros. Para quem não está a ver, é quem vai do Martim Moniz até à Graça: é uma subida bastante íngreme! Portanto não é fácil; há pessoas mais velhas que fazem questão de ir no andor no Senhor dos Passos ou no andor de Nossa Senhora, muitas vezes cumprindo promessas, e muitas vezes acabam por ter de ser substituídas. Estamos a falar dum peso bastante grande.

Vale a pena lembrar, para quem não está tão familiarizado com esta procissão, que há vários momentos de paragem, retratando a Via-Sacra. O percurso, aliás, é idêntico em termos de cumprimento, não é?

O percurso é mais ou menos o mesmo que a Via-Sacra. Estamos a falar de sete Passos; são lidos sete sermões das várias passagens. Antigamente existiam quatro pequenas capelas a que nós chamamos “Passos”: são pequenas capelas, pouco profundas, onde há uma imagem do sermão que é lido nessa passagem. Existiam quatro capelas iniciais e, depois, havia outras móveis: existia a Igreja de São Roque, que era donde a procissão saía, existia a Igreja da Graça no final e, pelo meio, tínhamos mais quatro Passos que foram erigidos pela Irmandade; havia também uma capela móvel que era ali pela Igreja da Encarnação, ali próximo.

Dessas quatro pequenas capelas que nós tínhamos, duas desapareceram com o crescimento da cidade: uma ficava no Rossio e outra ficava no Martim Moniz, em frente à Igreja de Nossa Senhora da Saúde. Ficaram duas: uma esteve sempre na posse da Irmandade, no Largo do Terreirinho, que é mais ou menos a meio do percurso entre o Martim Moniz e a Graça; e havia outra, que deixou de estar na nossa posse em 1912, fruto duma guerra judicial que houve com o proprietário do prédio, que é um pouco mais acima, quase na Graça, no edifício no Largo Rodrigo de Freitas - é o Passo de Santo André, no edifício onde nasceu São João de Brito.

Fruto, enfim, de várias conversas, em 1914 a Câmara de Lisboa deu o usufruto à Irmandade e mais tarde, em 2019, a Irmandade comprou essa capela por um valor simbólico aos proprietários que tinham adquirido o imóvel à Câmara. Portanto, o ano passado foi uma alegria imensa para nós, porque em 2020 conseguimos reinaugurar esta capela que tínhamos perdido por mais de 100 anos. Foi um acontecimento muito importante para nós.


Os irmãos são cerca de 500 agora. Quem são essas pessoas que fazem parte da Irmandade? São muito diferentes entre si? Há um perfil que se pode traçar?

Não, não há um perfil que se pode traçar. Podemos dizer que temos muitas pessoas de famílias ligadas desde sempre à Irmandade. Temos muitos irmãos. Há um caso curioso duma família que está há 14 gerações sucessivas na Irmandade.... eu acho que é um caso único em Portugal. O filho dum dos Irmãos que nós temos lá é a 14.ª geração, é impressionante! E temos muita gente assim, temos muita gente trazida por essas pessoas; temos muita gente da Graça; há igualmente muita gente que tem uma devoção grande a Nosso Senhor dos Passos e que se junta à Irmandade.

Nós não podemos nos esquecer duma coisa: o Senhor dos Passos era a grande devoção lisboeta. É engraçado, basta ver os filmes portugueses antigos, com Vasco Santana e outros, e eles falam sempre do Senhor dos Passos. Há uma passagem num dos filmes - agora não me recordo agora qual - em que alguém diz que ir a Lisboa sem ver o Senhor dos Passos é o mesmo do que ir a Roma e não ver o Papa... qualquer coisa assim. Enfim, o Senhor dos Passos foi sempre muito popular e era a grande devoção lisboeta.

É muito interessante ver participam na procissão pessoas muito diferentes, é surpreendente ver a quantidade e a diversidade de personalidades que às vezes ali se junta...

É verdade, acho que isso se deve ao Senhor dos Passos. Não é responsabilidade nossa. Temos tido nos últimos anos o sr. Presidente da República, tem a amabilidade de se juntar a nós. Tanto quanto me explicou, ia à Procissão do Senhor dos Passos quando era pequeno e, portanto, junta-se hoje em dia todos os anos à procissão do Senhor dos Passos. Temos o presidente da Câmara, temos toda a vereação, temos embaixadores, presidentes de junta de freguesia, temos o duque de Bragança, enfim é muito variada a participação na Procissão do Senhor dos Passos.

Quem vem de fora fica surpreendido com esta diversidade de pessoas, todas com o mesmo propósito e, portanto, também é uma coisa que nos move a nós, Irmandade. Gostamos de trazer este espírito que é o espírito de Páscoa e que nós consideramos que deve existir. Não posso esquecer também o apoio sempre permanente e constante do senhor cardeal patriarca que foi a pessoa, ao longo dos anos, que nos estimulou sempre a retomar a procissão grande, a procissão como era originalmente.

Falava há pouco do que move a Irmandade. Olhando também para o seu percurso - é um homem ligado à comunicação, é administrador da Cunha Vaz consultores -, com essa atividade profissional, com a família, o que o move nesta entrega de anos à Irmandade do Senhor dos Passos?

Uma questão de fé. Também estou familiarmente ligado à Irmandade do Senhor dos Passos: a minha mãe entrou bastante cedo, o meu avô também bastante cedo e por aí fora. Portanto, há este apelo, esta chamada familiar se quiser e, depois, é uma questão de fé. Sempre fez parte da minha vida. Aliás, nós temos ali irmãos que trazem os filhos quase recém-nascidos para serem irmãos do Senhor dos Passos, é uma coisa impressionante.

Há um sentido de pertença muito grande. O que significa que, para nós, isto faz parte da nossa caminhada da Quaresma. Daí eu ter tido há pouco que para nós é uma tristeza imensa a procissão não poder sair: esta preparação da Procissão do Senhor dos Passos é o principal objeto da Irmandade.

A Irmandade do Senhor dos Passos foi criada em 1586 para fazer a procissão: foi criada por um pintor de santinhos, Luís Álvares de Andrade, que quis fazer uma procissão um pouco semelhante às que eram feitas em Sevilha. E com o arcebispo da altura, D. Miguel Castro, criaram esta Irmandade para fazer exatamente esta procissão. Portanto, o que é que me liga? Liga-me a minha fé e liga-me a minha história.