Antigo ministro da Economia. “Sempre houve assalto aos fundos comunitários”
14-10-2020 - 08:10
 • João Carlos Malta

Ainda assim, o especialista em fundos europeus diz que, se fosse feita uma hierarquia dos países "onde há mais fortes indícios de corrupção, Portugal não estaria na lista".

Nos próximos 10 anos, Portugal terá para executar um total de 57,9 mil milhões de euros, o que representa uma média de seis mil milhões por ano, quase 16,5 milhões por dia.

Será um período decisivo para a vida económica e social do país, e para Augusto Mateus, antigo ministro da Economia do Governo de António Guterres e especialista em fundos comunitários, é o momento de o país pensar em deixar para trás a ideia de que o que faz falta é criar uma nova Autoeuropa. Não é, acredita.

É uma década em que se joga o futuro, e o homem que apelidou de "semi-falhanço" os 25 anos de fundos estruturais, quando avaliou a aplicação deste dinheiro num trabalho publicado em 2013, diz agora que "os grandes beneficiários dos investimentos que têm de ser feitos têm de ser as novas gerações". Não há muita margem para erros.

Em relação à corrupção no uso destas verbas, diz que é uma dimensão lateral do fenómeno. O busílis está noutro lado: "O problema que temos não é só de transparência e de corrupção, que é uma questão importantíssima, o problema mais grave muitas vezes é o dos erros que não se fazem por mal, os erros que se cometem por se ver pouco, por se ser míope".

Em 2013, disse que os primeiros 25 anos de aplicação dos fundos da União Europeia foram um “semi-falhanço”. Mudou alguma coisa para que não se volte a repetir?

Mudaram muitas coisas, mas talvez seja útil situar o debate atual, tem-se falado muito a propósito do plano de recuperação de um conjunto de montantes colocados à disposição dos países da União Europeia para fazerem face à crise económica e social espoletada pela pandemia de Covid-19. E obviamente quando começamos a somar, somamos tudo: as subvenções, os empréstimos, o que ainda não foi executado da programação de 2014-2020, o que é programação de emergência para o imediato, com uma programação de médio prazo para recuperar a economia.

A primeira ideia que gostava que as pessoas percebessem é a de que nada do que se vai passar é sobre gastar dinheiro, sem mais.

Quem é que gasta? O setor público, ou o setor privado? Dentro do setor privado que tipo de empresas? De que atividade? Que tipo de projetos?

Há uma panóplia imensa, e qualquer pessoa percebe que um plano não é um inventário de despesas, é uma perspetiva de desenvolvimento do país aproveitando todo o trabalho de programação para melhorar a produtividade e a capacidade das empresas, poder melhorar o nível das famílias e poder aproximar mais todo o território nacional das mesmas condições de desenvolvimento económico e social.

Houve alguma mudança de fundo no país para aplicar estes fundos?

Temos uma maior dificuldade de investir do que há 25 ou 30 anos depois da entrada da União Europeia.

Porquê?

Porque investimos menos. Em termos simples,Portugal tem um nível médio de produtividade − se compararmos com as primeiras 15 economias das 28, que passaram a 27 com o Brexit − de 52% da produtividade média, 71% do poder de compra, 84% do nível de consumo. É uma economia em que se foi cavando uma grande capacidade de convergir e de melhorar no contexto europeu.

Fomos perdendo dinamismo no investimento, a Europa andou sempre nos 22% que vai para investimento da riqueza privada. Portugal com os fundos estruturais aumentou bastante o investimento, do princípio dos anos de 1980 para o fim passou os 20%, chegou aos 27% a 28% e em 2019, antes da pandemia tinha 16% de taxa de investimento.

Portugal sai da crise das dívidas soberanas de 2008, em parte sacrificando o investimento público. Durante 10 anos, esteve nos 10 primeiros lugares do investimento público per capita na União Europeia, agora só tinha a Bulgária atrás. Temos ainda um excessivo endividamento público, privado e das famílias e isso limita a capacidade de investimento.

Estamos descapitalizados?

Sim, estamos descapitalizados.

Mas voltando a primeira questão, estamos melhor ou pior preparados para aplicar o dinheiro dos fundos europeus?

Estamos melhor preparados em termos da qualificação da população ativa. Apesar de ainda termos muitas dificuldades nesse aspeto, muitos portugueses não frequentam ainda as universidades. Nos mais velhos ainda temos pessoas muito pouco qualificadas.

"Precisamos de outra Autoeuropa?Não. Precisamos de investimentos do tipo da Autoeuropa, mas noutras atividades. Muito mais ligados à transição energética, à transição digital, à descarbonização, à melhoria das soluções domóticas, à atenção ao desenvolvimento urbano e rural de um ponto de vista mais integrado"

Temos também de parar de sonhar com investimentos nacionais ou estrangeiros em atividades que não são desenhadas no investimento, nem nas competências mais avançadas.

Em grande parte, sonhamos com isso, quando estamos a dizer que precisamos de mais uma Autoeuropa. Passa-se a vida a dizer isso, políticos, intelectuais, sindicatos e associações empresariais, mas devíamos entender isso como precisarmos de investimentos com contribuição positiva para o desenvolvimento económico que teve a Autoeuropa.

Não precisamos de mais uma Autoeuropa?

Não. Precisamos de investimentos do tipo da Autoeuropa, mas noutras atividades. Muito mais ligados à transição energética, à transição digital, à descarbonização, à melhoria das soluções domóticas, à atenção ao desenvolvimento urbano e rural de um ponto de vista mais integrado.

Devemos escolher investimentos bons e não nos preocuparmos se é nacional ou estrangeiro, devemos promover muito mais articulação entre empresas. Atualmente, qualquer produto mais sofisticado que chegue ao mercado é resultado da colaboração entre milhares de empresas.

Mas essa não é a nossa cultura empresarial?

Muda-se rapidamente. Ela é muito da natureza dos negócios e do mercado. Temos atividades muito tradicionais e muito modernas. Portugal tem um setor exportador de serviços não às pessoas, mas às empresas, em plataformas digitais, que tem expressão significativa na nossa exportação de bens e serviços. Já não somos só um país que exporta o que as pessoas passam a vida a referir, como os componentes para automóveis, os moldes de plástico, a cortiça, os recursos naturais, o vestuário e o turismo. Isso mudou, temos mais expressão internacional na área dos serviços.

Em Portugal temos tido muito mais política financeira do que política económica. Temos estado mais preocupados em conter o défice público e em ter incentivos financeiros genéricos às empresas do que ter uma verdadeira política económica, aquela que faz as empresas progredirem em direção aos modelos de negócio com futuro, à inovação, e a investirem mais nos recursos humanos

Então temos que definir setores para investir? O Estado pode fazê-lo?

Todas as atividades são boas desde que lucrativas. Como é que podemos aumentar os salários em Portugal? Para os aumentarmos, temos de mudar radicalmente a forma como as empresas funcionam. Temos de criar empresas que precisam de pessoas mais qualificadas. As empresas têm de ganhar competitividade para poderem pagar melhor. É contratando pessoas mais qualificadas que vão poder pagar melhor. Não é escolher atividades boas ou más, não é o "onde", isto é a propósito do "como". Temos alguma vantagem em alguns recursos endógenos, materiais de construção, a floresta, na economia do mar. Temos vantagens muito significativas no contexto europeu e mundial.

Estamos sempre a discutir o onde [fazê-lo] e o como [fazê-lo] é que é absolutamente decisivo.

Mas está otimista ou pessimista em relação aos próximos dez anos de aplicação de fundos europeus?

Só podemos estar preocupados. Estamos a enfrentar a maior crise económica e social que conhecemos.

Se mantivermos o nível de debate e de propostas que temos tido estou pessimista. Tem de haver um encontro entre política pública e estratégia e decisão provada. O Estado tem coisas insubstituíveis para fazer. Temos de ter nesta pandemia, e na saída da pandemia, serviços de saúde melhorados. Tenho insistido na necessidade de uma programação financeira plurianual para a saúde. A saúde não pode ser gerida com orçamentos anuais, tomam-se sempre más decisões.

"Estado ou privados? "É uma opção que faz pouco sentido, porque se eu tiver um desequilíbrio favorável ao setor púbico não vou ter grandes resultados e se tiver um desvio favorável à mera transferência de recursos do setor público para o setor privado não vou ter resultados significativos."

Há outros investimentos públicos em que já é mais difícil de o fazer. Um aeroporto já não é só um aeroporto, nem uma autoestrada é só uma autoestrada, são plataformas de infraestruturas, equipamentos e de serviços. Sem serviços não têm muito valor. São projetos que articulam múltiplas empresas.

A produtividade não resulta do esforço individual, mas da inteligência coletiva e da combinação de vários fatores, desde a competências de quem trabalha até à qualidade da organização de trabalho e dos modelos de negócio, da incorporação do conhecimento.

A mais valia que temos é o entendimento por parte dos decisores políticos na Europa de que quem vai pagar tudo isto são as gerações ou que ainda não nasceram, ou que têm cinco, seis, sete anos.

Concorda então com o presidente do PSD, Rui Rio, que falou de que este dinheiro tem uma fatura, e que serão as gerações mais novas que o vão pagar…

Claro que sim, quem perdeu mais tempo para passar esta ideia foi a presidente da União Europeia, Ursula Von der Layen, no quadro da aprovação que fez no contexto europeu. Em Portugal, o presidente do PSD teve essa intervenção que eu acho que é correta. Os investimentos têm de ser feitos a olhar para a frente e não a olhar para trás. Os grandes beneficiários dos investimentos que têm de ser feitos, têm de ser as novas gerações.

Os próximos anos devem ser de aposta primordial nas empresas ou no Estado. É uma opção que se tem de tomar?

É uma opção que faz pouco sentido, porque se eu tiver um desequilíbrio favorável ao setor púbico não vou ter grandes resultados e se tiver um desvio favorável à mera transferência de recursos do setor público para o setor privado não vou ter resultados significativos.

Vivemos em economias mistas em que há o estado que regula e incentiva as economias, e em que a inovação, o conhecimento científico e a produtividade são desenvolvidas no setor privado.

Não devemos ter grandes discussões sobre esta matéria. Mas como o estado está descapitalizado e tem mais desafios do ponto de vista das alterações climáticas, do envelhecimento da população, da coesão territorial, é fácil ter uma cobertura de partida para investimento público. Temos é de garantir que estamos a fazer futuro e a investir quer no público, quer no privado, em coisas que fazem sentido, que geram retorno e que pagam a despesa inicial e geram mais riqueza. Esse é que é o grande debate: os bons projetos e as boas ideias.

A polémica sobre a forma como estes fundos vão ser aplicados tem sido intensa. Há muitas acusações da oposição de que a máquina socialista se está a preparar para os arrebatar. O episódio da não renovação do mandato do presidente do Tribunal de Contas, a eleição dos novos presidentes da CCDR e a simplificação dos contratos públicos foram visto como sinais premonitórios. Como interpreta tudo isto?

Isso é em primeiro lugar uma questão política, em sentido estrito, não é um debate nem social nem económico. Deve haver um largo consenso de que não haja aproveitamentos partidários parciais desta situação. Estes fundos não são para algum partido e algumas pessoas, ou algumas forças, conquistarem poder. Estes fundos são para dar poder à sociedade portuguesa e aos portugueses. Se não for assim, são mal aplicados.

Não concordo com o modelo das CCDR, para certas decisões precisamos de ganhar escala, para outras de descentralizar, não podemos tratar tudo como se o pequeno fosse bom e o grande mau, ou o contrário. Não podemos confundir as coisas.

Mas estes sinais são ou não preocupantes?

São preocupantes, não do ponto de vista político que está por detrás deles, mas porque se está a perder tempo com coisas que ainda não são as prioritárias.

A organização Transparência e Integridade diz que teme que se esteja a preparar um assalto aos fundos comunitários. Também o atemoriza?

Sempre houve assalto aos fundos comunitários. Têm mais de 30 anos, e ao longo desse tempo temos agentes económicos privados e agentes públicos que se posicionaram para capturar montantes significativos dos fundos estruturais. Uns foram capturados e bem usados, e outros capturados e mal-usados. Essa é a história em qualquer país.

Nos primeiros 25 anos de fundos estruturais, em Portugal, havia uma grande rivalidade entre autarquias e não havia cooperação, houve duplicação de investimento e fizeram-se piscinas a mais, centros escolares a mais, podia-se ter apostado na colaboração intermunicipal e não se fez.

O problema que temos não é só de transparência e de corrupção, que é uma questão importantíssima, o problema mais grave muitas vezes é o dos erros que não se fazem por mal, os erros que se cometem por se ver pouco, por se ser míope. Por se estar a pensar só na pequena coisa. Esses são os erros mais trágicos. São erros em que as pessoas perseguem o que consideram ser mais justos, que acham que são interesses coletivos.

Quais foram os maus exemplos claros de aplicação de fundos europeus?

As primeiras gerações de ETAR têm uma paupérrima configuração técnica, foram mal pensadas, houve duplicações.

"Os fundos europeus têm mais de 30 anos, e ao longo desse tempo temos agentes económicos privados e agentes públicos que se posicionaram para capturar montantes significativos dos fundos estruturais. Uns foram capturados e bem usados, e outros capturados e mal usados"

Houve incentivos a mais para manter a especialização da economia portuguesa, e a menos para a alterar. Existiram incentivos mais dirigidos para a compra de equipamentos do que para o desenvolvimento de novos produtos. Isto não é a propósito de dinheiro e de milhões, tenho dinheiro e já está.

A pandemia traz novos desafios na aplicação dos fundos?

A crise é muito assimétrica, há atividades que não foram atacadas, e há atividades que desapareceram. Temos de combater essa assimetria. A capacidade e a experiência de gerir fundos europeus nunca lidou com esta assimetria, lidou sempre com uma economia ao mesmo tempo.


CASOS DE COVID-19 POR DIA EM PORTUGAL

Temos de evitar que um partido, fala-se no PS porque está no poder, se aproprie dos instrumentos de intermediação entre o país, os agentes económicos e sociais e os fundos estruturais e tenha um poder que não deve ter. Isto não é dar envelopes a pessoas, mas estimular a economia portuguesa.

A facilitação da contratação pública com mais agilidade de procedimentos e com o aumento dos valores para os quais é necessário visto do Tribunal de Contas, pode ser um propulsor para o aumento de irregularidades ou algo que era necessário e fundamental para executar tanto dinheiro de fundos europeus?

Estamos a falar de fundos com uma utilização estrutural. Estes fundos são mais tranquilos, há mais tempo, não há nenhuma justificação para acelerar a contratação pública. Há o desafio de até ao final de 2022 ter grande parte disto em ação, é possível ter um modelo de contratação pública que não tem de ser acelerado, tem é de ser eficaz.

Corrupção?"Há um conjunto de temas que são oportunistas em que as pessoas têm conversas fáceis, em que para se ser popular se diz um conjunto de banalidades e de inverdades, e as pessoas adoram."

É preferível é que haja um modelo transparente e eficaz de contratação pública a fazer face a esta necessidade de ter parte disto tudo no terreno. O mesmo não se passa com a componente destes fundos que é par mitigar a pandemia. Daqui até ao final de 2022 temos desafios imensos na saúde, na vida social, na proteção dos mais fracos, temos um conjunto de desafios que precisamos de responder muito rapidamente. Nessa perspetiva temos um modelo de contratação pública em que não se perde rigor, mas se ganha velocidade.

Há certos investimentos públicos em que a organização da contratação tem de ser feita pelo preço e garantidas as exigências técnicas do caderno de encargos, há outros onde a coisa pia mais fino, se falamos de investimentos de valorização do património, arquitetura de desenvolvimento em cidades, não é o preço que resolve isso.

O combate à corrupção é uma pequena parte da coisa. Há coisas que se podem gerir pelo preço e há outras que tenho de gerir pela distintividade, e a relevância mundial e internacional.

Num artigo do Eco, o ex-presidente da Agência para o Desenvolvimento e Coesão José Santos Soeiro escreve que Portugal foi também o Estado membro que apresentou os mais baixos níveis de irregularidades na utilização dos fundos da coesão em toda a EU. Concorda com esta ideia?

Se quiséssemos fazer uma hierarquia onde há mais fortes indícios de corrupção, Portugal não estaria nessa lista. O que não quer dizer que não haja corrupção. Há um conjunto de temas que são oportunistas em que as pessoas têm conversas fáceis, em que para se ser popular se diz um conjunto de banalidades e de inverdades, e as pessoas adoram.

Porque é que se fala então tanto de corrupção?

Porque as pessoas falam do que não sabem. Quando um jornalista tem de comentar algo que não é da sua especialidade, fala de generalidades. Diz que a gravata era bonita, a pessoa simpática. Fala de generalidades. Há pouca informação e pouco respeito pelas instituições e pessoas competentes. Liga-se pouco ao trabalho de avaliação da aplicação dos fundos estruturais. Há uma apresentação com 200 pessoas, os trabalhos são editados, há um conjunto de alterações e ninguém liga nenhuma.

Há uma maneira de fazer política em Portugal que é de um desrespeito muito grande pelo que está bem e vem detrás. Há uma tentativa de mudar coisas que não precisam de ser mudadas. Não há uma prática de solidariedade democrática em que mesmo mudando a natureza do Governo, não tem de mudar o que estava a ser feito e bem feito. Mesmo às vezes, quando muda o ministro muda tudo dentro do mesmo Governo.

Não se liga muito as avaliações, o que é dramático.