"O país ainda não absolveu os desertores da guerra colonial"
25-10-2016 - 14:12
 • Dina Soares

Entre 1961 e 1973, mais de 8 mil rapazes desertaram para não irem à guerra colonial. São dados descobertos por dois historiadores de Coimbra que começaram a fazer a história de quem decidiu fugir à guerra. O tema continua a ser quase tabu. Quem se recusou a lutar em Angola, Moçambique e na Guiné atribui este silêncio ao facto de a revolução de Abril ter sido feita pelos mesmos militares que fizeram a guerra.

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Em 1976, Fernando Cardoso pegou no recorte do “Diário Popular” que noticiava a amnistia para os desertores da guerra colonial e dirigiu-se ao Departamento de Recrutamento Militar de Lisboa para resolver a sua situação militar.

“Foi uma bomba naquele quartel. Para eles um desertor devia ser um tipo com escamas, cauda bífida, língua de fogo. Ficaram a olhar para mim como se fosse um bicho. Um desertor? Era uma figura da fantasia. O coronel Fabião, que era o comandante daquela unidade militar, a primeira coisa que fez foi pedir a arma e o fardamento.”

A arma e o fardamento tinham ficado no Quartel de Tavira, onde Fernando acabara, seis anos antes, a especialidade. Tinha, então, 22 anos e uma certeza inabalável: recusava-se a participar na guerra colonial. Ia desertar.

A guerra colonial ensombrava o horizonte de todos os rapazes nascidos a partir de meados dos anos 1940. Desde muito novos sabiam que o seu destino passava pela guerra, exaltada pela propaganda oficial da defesa da pátria do Minho a Timor. A grande maioria resignava-se, mas muitos disseram-lhe não.

Miguel Cardina, historiador especializado no estudo da guerra colonial, está a analisar os arquivos militares. Até agora encontrou mais de 8 mil casos de deserção, entre 1961 e 1973. São dados que, no entanto, pecam por defeito. “Têm algumas lacunas em termos de anos, relativamente a alguns dos territórios que estiveram em guerra também há grandes lacunas temporais e quase só temos dados relativos ao Exército. Faltam-nos muita informação relativa à Marinha e à Força Aérea”.

Desertar, decisão sem retorno

O levantamento está a ser feito caso a caso. E cada ficha de arquivo tem por detrás uma história. O cineasta Rui Simões conta a sua.

Em Agosto de 1966, Rui Simões deixou Portugal porque não queria ir à guerra. “Eu beneficiava de um conjunto de condições muito positivas para poder fugir. Era agente dos Sheiks, uma banda de rock muito conhecida, que cresceu de tal forma que se tornou um fenómeno nacional. Isso permitiu-nos ter influência e obter um passaporte verdadeiro que me permitiu sair calmamente pela fronteira. Foi o que fiz, como quem vai ali e já volta. O pretexto era tratar de uma ‘tournée’ dos Sheiks em Espanha.”

Rui Simões conseguiu sair de Portugal sem problemas, mas, quando chegou a Paris, os problemas lá estavam à sua espera. Sem trabalho, sem papéis, sem pátria, acabou por se fixar em Bruxelas com o estatuto de refugiado.

“Estava sem pátria, sem trabalho, sem condições de vida. Em Portugal era um filho da classe média, com algum conforto, mas quando parto não tenho condições nenhumas. Sou um marginal na sociedade e aí a minha revolta é maior e a minha luta é mais radical. Integro os movimentos que me estão próximos e não os portugueses, que já não me diziam nada”, conta, 50 anos depois.

A luta de Rui Simões passou a ser a luta pelo dia a dia. Portugal transformou-se numa memória longínqua. “É esse o grande passo. Quando decidimos ir, sabemos que, em princípio, não vamos voltar. Durante dez anos nunca pensei voltar e fiquei muito admirado com o 25 de Abril porque não estava à espera, nem sequer me interessava pelo que se passava em Portugal. Tinha esquecido completamente e quase abandonado preocupações em relação a Portugal”.

“A minha mãe chorou, chorámos os dois”

O cineasta reconhece que, mesmo não sendo um activista político, o universo da sua geração é o universo dos exilados e desertores, o mesmo onde se movia Fernando Cardoso, que desertou para Paris também no mês de Agosto, mas de 1970.

“Apanhámos uma camioneta e fomos ter com alguém no Alentejo, na zona de Marvão. Pelas cinco da manhã, levantámo-nos e percorremos uns vales por uma hora ou duas, com alguém a guiar-nos naquele lusco-fusco da madrugada. Fomos ter a uma aldeia espanhola onde nos esperavam dois camaradas nossos, que estavam legais e que nos levaram de carro até Paris. Na fronteira francesa falámos o nosso pior francês, dissemos que éramos trabalhadores emigrantes e deram-nos um salvo-conduto de um mês para ir para Paris e para arranjar trabalho e estadia.”

Em Paris, foi acolhido numa casa comunitária pertencente ao Comité de Auxílio aos Desertores e Exilados, arranjou uma carta de trabalho como lavador de vidros e ligou à mãe. “Eu tinha saído sem avisar a minha família. Era uma questão de segurança. Quando cheguei a Paris e telefonei à minha mãe, ela ficou muito espantada. Apesar de apoiar a minha decisão, é sempre um corte brutal.”

Lembra-se “bem desse telefonema”. “A minha mãe primeiro ficou em silêncio. Depois chorou, chorámos os dois e não se disse mais grande coisa. Havia uma espécie de compreensão tácita do que estava a acontecer.”

Uma realidade silenciada pela história

Olhar para a guerra colonial através dos olhos de quem se recusou a fazê-la é uma abordagem nova. Há pouca informação disponível para uma realidade muito complexa. É que, além dos que fugiam entre a recruta e o embarque para as colónias, havia também os que desertavam depois de chegar a África e as fugas registadas entre os africanos incorporados na tropa portuguesa. Gente diferente com razões diferentes. Motivos políticos, morais, éticos ou simplesmente uma forma de escapar ao sofrimento.

O historiador Miguel Cardina encontrou um caso em que foi a solidão a ditar a fuga. “Trata-se de um indivíduo que é ferido, está no Hospital Militar numa situação de profundo abandono e de tristeza, amputado, e decide fugir do hospital para ir ter com a família. E cai na categoria de desertor. Depois é capturado e é uma história diferente que ilustra que, quando estamos a falar de desertores, há situações muito diferentes.”

Aos desertores juntam-se os faltosos, rapazes que nem sequer se apresentavam à inspecção, e que, segundo os próprios militares, devem rondar os 200 mil, e os refractários, aqueles que faziam a inspecção mas não se apresentavam para a recruta. O seu número oscila entre mil e dois mil por ano. Todos juntos, podem chegar a perto de 240 mil durante os 13 anos da guerra. Gente a mais para ficar esquecida pela história.

Miguel Cardina admite que o facto de a revolução em Portugal ter sido feita pelos militares pode ter contribuído para este silenciamento.

“Os militares têm o papel fundamental no derrube do Estado Novo. Isso faz, naturalmente, com que se crie uma espécie de curto-circuito entre quem, simultaneamente, conduz uma guerra injusta e uma mudança política justa”, analisa.

“A situação de quem recusou a guerra acaba por não encontrar aqui um espaço de respiração e de visibilidade pública porque se, por um lado, eles estão do lado certo da História porque recusaram a guerra, por outro lado, ao terem saído da instituição militar, acabaram por não participar nesse processo de mudança política.”

Acresce, diz ainda Miguel Cardina, que a sociedade portuguesa ainda não absolveu os desertores que, mais de 40 anos depois, continuam sujeitos ao julgamento moral.

“Se a tudo isto juntarmos o binómio coragem/cobardia, que surge frequentemente quando se discute esta questão, percebemos que as questões políticas e as questões morais acabam por ter, ainda hoje, um peso importante e tornar este tema incómodo.”