David Justino prevê crescendo de tensão social com "radicalização" dos professores
02-02-2023 - 07:00
 • Susana Madureira Martins

Tem 70 anos, acabou de jubilar-se, deu a última aula há duas semanas e lançou agora um livro, 'Ensaios sobre o dia seguinte", que inclui reflexões e alertas, por exemplo, sobre a área da Educação. David Justino já foi ministro desta pasta, olha com preocupação para a "radicalização" dos professores e dos movimentos sociais em geral e alerta para a necessidade de uma "base de entendimento" entre o Governo e os sindicatos. Sem isso, "vamos ter um problema muito mais grave a seguir", assume.

Em entrevista à Renascença, o ex-vice-presidente do PSD de Rui Rio diz-se "extremamente preocupado" com "aquele grito que é ameaçador" que ouviu a André Ventura no último fim de semana.

David Justino aconselha a direção de Luís Montenegro a não deixar ao Chega "a iniciativa e a liderança, como tem deixado nos últimos meses", caso contrário o "PSD vai ter dificuldades"

Deu a última aula há uma semana, está acabadinho de jubilar-se, escreveu e lançou agora um livro, 'Ensaios sobre o dia seguinte'. Diria que é um livro hiper realista, pessimista em relação ao futuro do país?

Não. Eu acho que é realista. Geralmente, não gosto de criar ilusões. Mas também não gosto de alimentar desilusões. Acho que há que encontrar o rumo certo. Todos os problemas têm solução. E o apelo que faço é que se encontre solução e que se queira, tenha vontade política e não só, social, para encontrar essas soluções. Portanto, digamos que é mais um alerta do que propriamente uma visão pessimista. Acho que nós não podemos ser nem otimistas nem pessimistas.

Temos que identificar qual é o problema, temos de ver qual é a sua verdadeira dimensão. Desde quando é que ele aparece, como é que ele se constrói, para percebermos também qual é a melhor maneira de o superarmos agora. A maior parte desses problemas que identifico no caso português tem a ver fundamentalmente com a estrutura do próprio território, tem a ver com o problema da população, tem a ver com o problema dos movimentos migratórios, com o funcionamento do sistema político, com o crescimento económico.

Não há soluções mágicas. São problemas que demoraram muitos anos a estruturarem-se, não foi de um momento para o outro que o problema surgiu e, portanto foi-se acumulando. Alguns foram adensando, foram ganhando dimensões cada vez um pouco mais, quase irreversíveis. Quando digo que Portugal voltou ao labirinto. Mas os labirintos têm saída, o problema é que tem que haver essa capacidade de nós nos elevarmos um pouco e tentarmos perceber qual é o caminho.

Encontrar um GPS qualquer?

Exatamente, ou seja, qual é o caminho que nós vamos ter que seguir para sair do labirinto. E, nesse sentido, estou preocupado porque andamos ali à volta, andamos tipo baratas tontas. E falta precisamente essa capacidade de construir um caminho e de construir um propósito e o propósito é sair do labirinto. O caminho? Há vários possíveis em todos os labirintos, há que escolher aquele que é o mais adequado e que é possível.

Há um capítulo no livro dedicado à Educação e não há tema mais atual do que este, tendo em conta a greve de professores.

Aquilo que noto, atualmente, relativamente ao movimento dos professores é alguma radicalização. E eu identifico essa radicalização, fundamentalmente pelo facto de as pessoas dizerem 'Ah, mas esse problema já é velho. Este problema já foi levantado'. Só que aquilo que digo é: como o problema não se resolve, cada vez vai ficando pior. A densidade problemática, digamos, é muito maior e, portanto, mais difícil para resolver. Há coisas que, ainda que tenham o mesmo aspeto, que tenham o mesmo vocabulário, o mesmo tipo de preocupações, se não se resolvem no tempo adequado, acabam por ganhar uma dimensão que depois se torna mais difícil

Que é o que estamos a assistir?

De certa forma, é. Lembro-me perfeitamente, porque isto já foi colocado quer no final, por exemplo, do governo Passos Coelho, mas depois foi colocado na altura da chamada crise dos professores, em que não houve passos significativos de forma a satisfazer aquilo que eram algumas das reivindicações do próprio movimento de professores. E quando esses passos não são dados, depois tem que se dar um passo maior para o qual não se tem pernas que chegue. E é nesse sentido que eu digo que nós estamos precisamente no limiar do que é possível. E, portanto, se nós não aproveitamos esta oportunidade para encontrar aqui uma base de entendimento, acho que vamos ter um problema muito mais grave a seguir.

O que é que podemos ver socialmente, um crescendo de tensão?

Sim, claramente. Entendo que antes do movimento sair para a rua, havia toda a vantagem em tentar, pelo menos atenuar uma parte das suas dimensões.

Vimos pela entrevista do primeiro-ministro que o Governo mantém as negociações com os professores em aberto, mas há ali um limite que é, por exemplo, a contagem do tempo de serviço.

Compreendo a posição do Governo relativamente ao impacto financeiro que essa contagem de tempo de serviço e recuperação do tempo de serviço possa significar. Agora, se tivesse sido feita há mais tempo, o impacto não seria tão grande. Por outro lado, lembro-me perfeitamente, porque estava na altura na direção do PSD, que fizemos algumas propostas no sentido de fazer um faseamento, pelo menos de uma parte do tempo de serviço.

Isso foi feito nos Açores, foi feito na Madeira, mas não foi feito cá. Ou seja, depois daquela quase chantagem que o primeiro ministro fez, mas ganhando essa guerra, não deveriam ter abandonado o problema, ou seja, pelo menos alguns passos deviam ter sido dados a seguir. Portanto, aquilo que está feito está feito, acabou, fica tudo na mesma.

Há também um fenómeno político, não é só um problema sindical e de satisfação das necessidades materiais, que tem a ver fundamentalmente com o seguinte: uma grande parte das pessoas que estão na rua, sejam professores, sejam agricultores, sejam outros, se calhar votaram no Partido Socialista e deram a maioria absoluta ao PS. De certa forma essa maioria absoluta tem um pecado original, que é a expectativa que criou de que poderia vir a resolver os problemas. Ora bem, não o fez.

Há uma desilusão?

Há uma desilusão. As pessoas sentem-se enganadas, porque no fundo veem outros montantes, como seja o dinheiro que o Estado meteu na TAP, as indemnizações e o dinheiro que se está a gastar em várias iniciativas. Parece que há dinheiro para tudo e não há para uma coisa que toda a gente diz que é fundamental para a sociedade portuguesa que é a educação.

E vê nesta tensão social que se tem assistido um caldo qualquer para uma interrupção da legislatura?

Não creio que seja inevitável. É um cenário possível, mas não é um cenário inevitável. Até porque há pequenas alterações que estão já a identificar-se, que poderão dar algum lastro ao Governo.

Quais, exatamente?

Nomeadamente, alguns indicadores económicos.

Mas que já existiam antes.

Sim, já, mas isso é sempre assim, não chegou ao bolso das pessoas. Uma coisa é termos indicadores económicos daqueles quadros, daqueles gráficos, aquelas coisas, previsões, e tudo isso. Outra coisa completamente diferente é saber quando é que as pessoas sentem isso no seu dia a dia. E as pessoas não sentiram.

Pegando nesta greve dos professores, acha que há aqui um novo sindicalismo, um novo poder? O que é que se está a passar em termos de tensão social?

Há uma radicalização. É óbvio que há, com recurso a formas de luta mais radicais, até mais inovadoras. Mas essa inovação não é uma inovação que esteja instituída e, portanto, aquilo que aparece de novo faz ruir o normal funcionamento da instituição educativa. Aquilo que noto é uma radicalização nos movimentos. Por exemplo, os movimentos ambientalistas, nomeadamente contra o aquecimento global, contra o problema das alterações climáticas, também estão a assumir dimensões radicais.

Aquela jovem sueca [Greta Thunberg], porque é que não dizem que também é um discurso de ódio, só se fala do discurso de ódio no que diz respeito ao racismo, aquilo é um discurso de ódio expresso através de preocupações ambientais. Esta radicalização é um movimento que se está a generalizar.

Era inevitável que chegasse a Portugal?

Não sei se era inevitável. Temos radicalização política, por um lado e há um esvaziamento, há um enfraquecimento, há uma fragilização das posições mais moderadas, centristas. Há uma emergência dos extremos. E é essa nova era dos extremos de que eu falo no livro que receio, porque os pilares já cá estão.

O caso dos coletes amarelos em França, é um caso evidente de radicalização dos movimentos sociais, portanto, não é só no discurso político. Não é só na ação política que existe radicalização. Há uma ligação muito estreita entre aquilo que é o funcionamento do sistema político e aquilo que são os movimentos sociais que lhe estão, independentemente de serem mais ou menos associados, mas que são simultâneos.

É essa combinação entre radicalização política e radicalização social que conduz precisamente a um esvaziamento das posições institucionais, do centro, mais moderadas e, acima de tudo, há dificuldade de construir compromissos.

Há desorientação?

Os sistemas democráticos vivem, não é de consensos, vivem fundamentalmente de compromissos. Um consenso em tudo a pensar o mesmo, não, não é isso. O compromisso é uma coisa e cada um mantém as suas posições, mas há uma margem de negociação em que se tenta encontrar uma solução que seja de responder àquilo que é o bem comum. Todos sacrificam alguma coisa para se ter um bem comum que pode ser beneficiado por todos.

No caso europeu, tal como no caso dos Estados Unidos, tal como aquilo que aconteceu no Brasil, por exemplo, há uma radicalização política que tem por base, e que está muito associada também à radicalização social.

O que é que a radicalização traz? A falta de confiança. É muito difícil num sistema democrático, funcionar como deve ser quando os cidadãos não têm confiança nas instituições. É uma busca pela segurança, ou seja, as pessoas sentem-se desorientadas e, portanto, todos aqueles que se apresentem como uma solução que lhes confere mais segurança e às vezes é mais autoritária, acabam por cair no apoio a esse tipo de soluções, soluções mais autoritárias, em alguns casos totalitárias e sempre em prejuízo dessa ideia de tem que haver compromisso e, portanto, os compromissos tornam-se cada vez mais difíceis.

E como é que tem visto as instituições responderem a este desafio? O Presidente da República, por exemplo.

Por mais que o senhor Presidente da República possa tentar por um bocado de água na fervura e criar condições para que o Governo governe, está a tornar-se cada vez mais difícil. O Presidente da República é um guardião do funcionamento das instituições e o que é certo é que as instituições se sentem de tal forma tolhidas na sua ação, que quando a gente fala daquela frase do 'normal funcionamento das instituições', é cada vez menos normal ou não funcionam ou funcionam mal.

É aquilo que acontece ao nível da Justiça, por exemplo, aquilo que acontece agora, no caso do sistema de ensino, no sistema de saúde, o que acontece relativamente às forças de segurança, relativamente às Forças Armadas, por exemplo, que são instituições e vivem precisamente da estabilidade e de confiança que os cidadãos têm que ter nessas instituições. Se os cidadãos perdem confiança e se rebelam contra essas instituições, é óbvio que o próprio sistema democrático está em causa.

Há uma implosão?

Não diria uma implosão, mas há uma deterioração progressiva. E quanto mais se deteriora, mais difícil é depois de recuperar. E depois estamos sempre expostos a aparecer um qualquer salvador da pátria. E isso é claramente um perigo.

Está a ver que já existe esse caminho em Portugal de encontrar um salvador da pátria?

Vi o dr. André Ventura a gritar no passado fim de semana no congresso do Chega. É aquele grito que é ameaçador. Se é aquele o estilo que ele vai querer imprimir à ação do Chega, fico extremamente preocupado. Para mim não é surpresa, já tinha percebido isso, mas parece que quer ainda radicalizar, nomeadamente quando diz que vai para a rua. A democracia não funciona na rua. A democracia é o sistema que institucionaliza o conflito e integra o conflito dentro do funcionamento das instituições.

E desafiador de uma instituição também, que é o PSD.

Também acontece, mas há outro aspeto que me impressionou que foi aquela votação no candidato único, 98%. O líder da Coreia do Norte coraria de vergonha com uma percentagem daquelas. Eu estou muito preocupado com isso. Poderão dizer que podem discordar, mas é esta a minha opinião, é esta a minha perceção e é um perigo.

E o PSD tem ali razões para ter uma preocupação?

Acho que tem, já o tinha antes e continua a ter ainda mais agora.

E como é que se responde isso? Era preciso ali uma clarificação qualquer?

Estou afastado do PSD há um ano. Sei que é um desafio para o PSD. Não é só um desafio eleitoral, é um desafio relativamente à natureza e à forma de interpretar a vontade popular. Porque se o PSD deixa ao Chega a iniciativa e a liderança, como tem deixado nos últimos meses, que eu tenho verificado, o PSD vai ter dificuldades. Agora eu espero que não, faço votos.

Há aqui um problema de sobrevivência do PSD a dada altura?

Não, não. Acho que o partido está muito enraizado na sociedade portuguesa. Não entro nessas visões catastróficas, digamos assim, do futuro do PSD, o PSD tem um caminho para andar. Agora, é necessário escolher bem o caminho.

Tem sido bem escolhido?

Pois, é essa parte que eu não vou dizer, porque é o caminho que os militantes escolheram e, portanto, é um caminho respeitável. Agora, eu posso discordar, mas não é pelo facto de discordar que eu agora vou tentar fazer aquilo que me fizeram a mim quando eu estava na direção do PSD, que era um boicote constante da liderança e da acção política. Não contem da minha parte para entrar nem conspirações, nem movimentos internos. É uma prática que é o que eu nunca farei.

Gostava que houvesse aqui uma clarificação desse caminho de que o PSD está a tomar? Se há aqui uma necessidade de clarificar exactamente o que é que deve ser o PSD, por exemplo, em relação ao Chega?

Há duas coisas que são importantes e que justificam um pouco a derrota que o PSD teve nas últimas eleições e que conferiu a maioria absoluta ao PS. Há dois pilares eleitorais. Um que era tradicionalmente social democrata e outro que nunca foi, ou pelo menos foi durante muito tempo e depois deixou de ser. O primeiro pilar tem a ver com a população mais idosa. O PSD tem que resolver este problema.

Que vem da troika.

Foram marcas profundas que foram deixadas e reganhar a confiança do eleitorado sénior é um dos grandes desafios. E isso não se faz com propostas pontuais ou com declarações. Faz-se com trabalho sistemático, obtendo respostas múltiplas para problemas que são múltiplos.

É extremamente difícil, porque geralmente esta população é muito sensível aos 10 euros que são colocados na conta, ao aumento extraordinário das pensões e o PS tem feito isso de forma exímia e portanto, esse pilar que era um pilar tradicional do PSD, o PSD perdeu, o PS ganhou. Neste momento, está claramente enquadrado no Partido Socialista. O PSD tem que lutar precisamente para recuperar esse eleitorado e para ser uma voz também desse eleitorado.

O segundo pilar é que um partido social democrata tem que ter soluções e tem que ter um discurso e tem que ter na sua preocupação o problema da pobreza e o problema das populações mais pobres. Se uma parte dos remediados até pode ter uma maior proximidade com o PSD, uma grande parte dos pobres não o tem. Não imagino um Partido Social Democrata, que não tem essa dimensão de políticas orientadas. Não é para a distribuição, porque não se pode distribuir aquilo que não se tem, mas, acima de tudo, de apontar um caminho de dignificação e, acima de tudo, de valorização do trabalho através de melhores salários, melhor produtividade, mais qualificações e respeitar precisamente que hoje há uma mole imensa de gente que, não estando na pobreza, está lá muito perto.

Portanto, qualquer solavanco na viagem poderá conduzir a que uma parte dessas pessoas possam ir para zonas de pobreza. Neste momento, a inflação já está a empurrar para isso. E como não há um acompanhamento em termos salariais com aquilo que acontece com os preços, as pessoas têm situações de pobreza expressa.

Seria possível fazer esse aumento salarial, mais do que tem sido feito, por exemplo, com o salário mínimo nacional?

É possível, o salário mínimo, sim. Mas, não há maneira de podermos resolver ou atenuar o problema da pobreza se não houver crescimento económico. Portugal precisa de ter taxas de crescimento acima da média europeia para criar não só emprego, mas acima de tudo para criar riqueza, isso tem que ser o foco fundamental.

É possível definir o que nós queremos estar daqui a 5, 10 anos sem entrarmos em fantasias. Um propósito que seja confiável. E depois, o que é que nós temos que fazer para atingir esse nível? Portanto, é esse tipo de raciocínio que nós devemos começar a privilegiar e não andar, a projetar. Definir uma estratégia e em função dos recursos que temos. Portugal não é um país rico em recursos e, portanto, o que tem que fazer é com base nos recursos que temos. Tem que ter essa visão de médio e longo prazo que lhes permita reunir as diferentes forças em torno desse propósito. Há coisas em que PS e PSD se calhar comungam dos mesmos desejos, comungam dos mesmos objetivos.

A forma de lá chegar é que é diferente?

Pode ser diferente. E nesse sentido, tudo bem. Uns querem ir mais à esquerda, outros querem ir mais à direita. O que interessa é que se vá. Agora, quando andamos aqui a marcar passo.

Isso era preciso também haver uma espécie de consenso, o tal pacto de regime?

É haver um compromisso. Convergência de posições. Por exemplo, o caso da defesa, com um ou outro aspeto, mas tem havido convergência entre dois grandes partidos ou mais até. Política externa, política europeia. Isto quer dizer que há matérias em que as pessoas se conseguem entender. Só que temos que alargar essas matérias a pilares mais decisivos e mais importantes, como seja a ideia do que é que vamos fazer com a atração de investimento, o que é que vamos fazer para dar garantias a quem investe de ter o seu retorno e não andarmos aqui a tratar os empresários e a tratar as pessoas que trabalham como se fossem 'outsiders' disto tudo.