​A obsessão com a genética não é ciência, é barbárie
18-06-2021 - 09:17

As pessoas querem adivinhar as doenças que vão ter ao longo da vida através do exame genético (...) Não se aprendeu nada com o século XX e com as obsessões eugenistas dos dois totalitarismos, fascismo e comunismo soviético?

“Place Beyond the Pines” de Derek Cianfrance é um filme que me irrita devido ao tipo de pessimismo que apresenta. Não tenho problemas com o pessimismo; às vezes não nos resta outra coisa senão uma visão pessimista ou triste sobre a natureza humana. De resto, gosto bastante de uma série soturna de Cianfrance, ‘I Know this much is true”. A minha crítica é dirigida à estirpe de pessimismo usada por “Place beyond the Pines”, uma espécie de determinismo biológico. No final, fica a ideia de que o filho seguirá sempre os caminhos do pai, como se não tivéssemos liberdade de escolha, como os laços de sangue formassem à nossa volta uma prisão e um caminho inexorável.

Vem isto a propósito de uma crescente obsessão da mente moderna com a genética. Como dizia aqui há dias, as pessoas querem adivinhar as doenças que vão ter ao longo da vida através do exame genético. Noutro ponto, a net está saturada de anúncios a serviços genéticos: o bebé que podemos escolher como se estivéssemos a escolher roupa ou então a descoberta da nossa árvore genealógica. Fico entre o desconfiado e o horrorizado quando vejo anúncios com pessoas que dizem assim: “sempre pensei que tinha sangue italiano, mas afinal tenho sangue judeu e magrebino”, ou “sempre pensei que só tinha sangue irlandês, mas afinal sou tão eslavo como irlandês”. Mas isto interessa para quê? Tendo em conta a minha história familiar, seria muito fácil descobrir no meu adn uma presença judaica. Mas isso seria importante para quê? Mudaria o quê na minha maneira de ser? Ter sangue judeu, fenício, eslavo ou irlandês devia ser uma irrelevância, uma mera curiosidade, uma piada, não uma obsessão. Não se aprendeu nada com o século XX e com as obsessões eugenistas dos dois totalitarismos, fascismo e comunismo soviético?

Outro negócio genético em alta é o teste de paternidade. Como salienta Margaret Talbot na “New Yorker”, este negócio próspero cresce devido à mitologia da traição conjugal omnipresente e - acrescento eu - devido às ansiedades de uma sociedade cravada pela desconfiança do divórcio. Sucede que os casos confirmados de paternidade ‘errada’ variam apenas entre o 1% e os 3,7%. A decência e a lealdade são mais comuns do que se pensa. Além do mais, o que interessa mais: o amor ou a genética? E se por acaso descobrirmos aos vinte anos que o homem que nos criou com amor não é o nosso progenitor biológico? Claro que isso não é uma irrelevância. Mas não são valores como a decência e o sacrifício mais importantes do que os laços biológicos? A família é uma escolha, não uma genética. Até se pode dizer que ter um filho do nosso próprio sangue não chega para o amarmos. Amá-lo implica uma escolha moral que nada tem que ver com laços genéticos.

Seja qual for o ângulo de análise, este essencialismo biológico e genético é profundamente retrógrado e até perigoso, apesar da enorme da capa de modernidade científica. Não, a obsessão com a genética não revela uma mente científica e moderna, revela uma mente primitiva.