“Para bem do Estado democrático, será importante o Presidente intervir” se diretiva da PGR não for revogada
13-02-2020 - 00:02
 • Eunice Lourenço (Renascença) e Helena Pereira (Público)

Sindicato dos Magistrados do Ministério Público não exclui convocar greve e garante que classe está unida contra “politização” da PGR. Marcelo será último reduto, afirma o sindicalista Adão Carvalho em entrevista à Renascença e ao jornal "Público".

Adão Carvalho, secretário-geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), lamenta o silêncio do PS perante aquilo que diz ser uma tentativa de “politização” da Procuradoria-Geral da República (PGR). Dentro de dias, dará entrada no Supremo Tribunal Administrativo a impugnação da última diretiva de Lucília Gago. Se mesmo assim o processo não for travado, vão a Belém pedir intervenção do Presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa.

O SMMP vai mesmo em frente com a impugnação da última diretiva da PGR?
O que foi decidido pela PGR no que respeita à suspensão da diretiva representa muito pouco e está muito aquém daquilo que pretende o sindicato. O objeto da suspensão é um pedido de parecer complementar apenas sobre uma pequena parte, a 10ª conclusão do parecer que está na base da diretiva. O nosso objetivo é que a diretiva seja revogada. Para efeitos de impugnação da diretiva, o sindicato terá necessariamente que recorrer ao Supremo Tribunal Administrativo para a impugnar. Está a ser preparada para dar entrada dentro do prazo legal, ou seja, 30 dias úteis a partir do momento em que a diretiva foi publicitada através do sistema de informação interno dos magistrados e se tornou obrigatória.

Estamos perante um risco de insubordinação dos magistrados? Poderá ser convocada uma greve?
Neste momento, a preocupação única é que a diretiva seja revogada por outras formas que não através de formas de luta como a greve, ou outros similares, que irão ser discutidas em sede de uma assembleia-geral e assembleia de delegados sindicais que já está agendada para o final de março. Aí, ouvindo os magistrados do MP, se irão tomar as decisões necessárias nessa matéria. Neste momento, a preocupação é fazer ver à PGR que este é um descontentamento geral dos magistrados do MP e que esta diretiva tem implicações graves no funcionamento da magistratura do MP enquanto uma magistratura autónoma.

Dê-me exemplos concretos do que pode suceder se a diretiva da PGR for por diante nos moldes atuais.
Não pomos em causa que somos uma magistratura hierarquizada. O que entendemos é que o tipo de instruções e ordens que podem ser dadas são no sentido de conformar em termos de operacionalidade e organização dos serviços, não se dirigem a um processo ou a um inquérito em concreto. O que esta diretiva traz é uma coisa completamente diferente que consideramos que viola grosseiramente o estatuto do MP que diz que, no âmbito dos processos criminais, apenas existe intervenção hierárquica nos termos previstos no Código de Processo Penal (CPP). Esta diretiva abre brechas à possibilidade de haver um processo privativo do superior hierárquico em que se desconhece por completo a forma como é tramitado porque não está criada nenhuma figura nem nenhum processo de acompanhamento com existência física que possa ser controlada pelos sujeitos processuais. Portanto, temos um processo secreto com deslealdade para com os sujeitos processuais que não têm conhecimento do tipo de intervenções e do tipo de ordens que estão a ser dadas.

António Cluny escreveu esta quarta-feira no “Público” que não faz sentido que, podendo o superior hierárquico mandar reabrir e refazer um inquérito no seu final, não possa intervir no decurso do mesmo para corrigir oportunamente o que o deva ser. E propõe uma atualização do CPP.
Existe uma mudança de 180 graus da posição de António Cluny porque, quando foi presidente do SMMP, foi das pessoas que mais se pautou pela autonomia interna dos magistrados e contra interferências para além das previstas no CPP. Não corresponde à realidade aquilo que diz no “Público”.

Se um magistrado conduz um inquérito e se um inquérito é distribuído a um magistrado ou num processo mais complexo a uma equipa de magistrados, são eles que do início ao fim delineiam a estratégia e a linha de investigação. A intervenção de um superior hierárquico no sentido de realizar ou não uma diligência entra em contradição com a possibilidade de reclamação hierárquica.

O ofendido ou o assistente vê na reclamação hierárquica a possibilidade que alguém que não esteve envolvido no processo possa dizer de forma isenta que o inquérito é insuficiente e, portanto, mandar reabrir para fazer novas diligências. Se esse superior hierárquico já participa do processo decisório, não faz sentido existir reclamação hierárquica.

O conflito entre autonomia e hierarquia não é novo, já que o estatuto do Ministério Público permite esta ambiguidade. Como é que Marques Vidal conseguia no passado articular estes dois vetores?

Joana Marques Vidal tinha emitido uma diretiva onde clarificava o âmbito de intervenção dos superiores hierárquicos e os instrumentos que podem utilizar para o fazer, designadamente a distinção entre instruções e ordens. Aí está o equilíbrio entre autonomia e hierarquia.

A hierarquia pode intervir, mas apenas naquilo que tem a ver com a operacionalidade, organização, escolher quem vai tramitar determinado inquérito, fazer equipas de investigação, de poder, caso não concorde com o rumo do inquérito, avocar o inquérito e assumir a sua responsabilidade. Este parecer é ainda mais gravoso do que alguns entendimentos que havia no passado porque não exclui qualquer tipo de intervenção incluindo da própria PGR. Admite uma intervenção hierárquica a toda a linha e em todos os graus.

Está a dizer que com esta diretiva se vai mais além das práticas no tempo de Pinto Monteiro?
Presumo que ele não tinha nada definido formalmente. Mas todos sabemos que se calhar iam além de qualquer diretiva. A verdade é que o risco de intervenção [com a recente diretiva] existe e, sendo o Procurador-Geral da República uma proposta do Governo, tem uma ligação política significativa. Essa influência fica legitimada com a diretiva. Qualquer intervenção do PGR mesmo que não fosse com uma intenção correta, ou seja, mesmo que fosse por pressão política, passaria a ser possível e de difícil controlo. Não é só a autonomia interna que está em causa, também está em causa a autonomia externa, a politização.

Esta tensão dura há várias semanas e nem todos os partidos se pronunciaram. Estranha o silêncio do PS, da ministra da Justiça e do primeiro-ministro? Que significado lhe atribui?
Neste momento, nenhum. Mas é uma questão importante que devia mobilizar do ponto de vista político. A questão não é uma questão interna dos magistrados, é perceber o que o Estado quer com a Justiça: se quer combater a criminalidade económica e financeira, a corrupção com magistrados isentos e independentes ou se quer tornar isso uma dependência do poder político. Sobre o silêncio, exigia-se outro comportamento. Não sei se é uma questão de timing.

O Presidente da República veio congratular-se esta semana com o pedido de parecer do conselho consultivo. Mas, pelas declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, se as ordens ficarem registadas por escrito e poderem ser conhecidas, então está tudo bem. Como viu esta reação?
Não sei se é recomendável que o PR se pronuncie sobre esta matéria ou se é o timing certo. Perante a suspensão, não se sabe ainda qual é o rumo que se vai seguir. Se vier a estar em causa a forma de intervenção do MP e existir o risco de politização do mesmo, penso que, para bem do Estado democrático, será importante intervir.

Se a diretiva não cair por completo, o Presidente da República deverá pronunciar-se?
Não me compete a mim decidir o que o PR vai fazer mas, para bem da Justiça, acho bem que o fizesse.

O sindicato já pediu alguma audiência ao Presidente?
Ainda não, mas será uma questão a equacionar no futuro.

Lucília Gago tem condições para se manter à frente do MP?
O que importa não é pedir a cabeça deste ou daquele, é que as coisas funcionem.

Toda esta questão surgiu depois de os procuradores do caso de Tancos terem sido contrariados pelo director do DCIAP na sua intenção de ouvir como testemunhas António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa. Mas não recorreram a nenhum mecanismo legal de recusa da ordem de Albano Pinto, embora o pudessem ter feito invocando que essa ordem era ilegal ou que violava a sua consciência jurídica. Porquê?
É muito complicado um procurador recusar ou determinar que uma ordem é ilegal. Se um superior hierárquico decide que não se faz determinadas perguntas a uma determinada pessoa porque são desnecessárias qual é o juízo de legalidade sobre tal matéria? Eu tenho que saber que por detrás disso existe um interesse que não aquele processual. Onde é que isso vai ser avaliado? No âmbito de um processo disciplinar ou no âmbito de um processo de avaliação do magistrado.

Há algum outro caso em que se tenham colocado problemas desta ordem?
Penso que não.

O novo estatuto dos magistrados entrou em vigor há pouco tempo, em janeiro. Como está a decorrer a aplicação do novo estatuto ou ainda é muito cedo?

Nesta fase, grande parte das normas do estatuto está à espera de regulamentos. O mais complexo, o dos movimentos, ainda não está feito.

E em relação à qualidade dos novos magistrados? Diz-se que nos últimos cursos a qualidade dos candidatos não era tão boa como a magistratura estaria a precisar.
Não consigo afirmar se são melhores ou piores do que os anteriores. Em alguns anos, não se preencheram as vagas todas do CEJ e, portanto, significa que temos que encontrar a razão para estas deficiências. Já aconteceu, haver 50 vagas para o MP e terem sido admitidos 32.

Há um problema de falta de qualificação no MP? Há magistrados que concentram muitos grandes processos.
Estamos sempre a aperfeiçoar-nos. A evolução da sociedade exige cada vez mais quer especialização, quer o aperfeiçoamento em determinadas áreas, que implica ao nível do CEJ e das magistraturas uma atualização que é essencial.

Há a sensação que os grandes processos demoram muito tempo porque estão todos nas mesmas mãos. Por que é que não chegamos à fase de julgamento mais depressa?
É uma questão complexa. Temos que perceber de que tipo de criminalidade estamos a falar, os tipos de meios de prova usados e as dificuldades inerentes. Não considero que alguns processos mais mediáticos tenham demorado muito, se compararmos o tempo que vão demorar após a acusação até chegar à fase de julgamento. Não se pode dizer que o tempo do inquérito seja assim tão elevado. A maior parte deste tipo de processos exige uma análise financeira rigorosa, elementos que dependem da colaboração de outros países, alguns fora da União Europeia. Implica um trabalho de análise de toda a documentação recolhida, de fazer todo o percurso do dinheiro. Só quem não trabalha neste tipo de processos é que acha que o tempo é excessivo. A PGR, no núcleo de assessoria técnica, têm três ou quatro elementos.

Tem havido reforço para esse tipo de assessorias?
Não é aliciante para um perito do Núcleo de Assessoria Técnica ganhar um vencimento de mil e tal euros quando no privado se ganha incomparavelmente mais. Não há assim muita procura e um processo destes exige gente com muita qualidade.

Não está otimista.
Vai resolver-se quando o Estado decidir apostar neste tipo de investigação criminal. Este tipo de criminalidade complexa exigia meios financeiros para dotar o MP da possibilidade de contratar os peritos que entendesse e não ter limitações orçamentais que é o que acontece em muitos países. Não há uma verdadeira autonomia financeira do MP. Está dependente do poder executivo. A PGR tem uma autonomia financeira para custos correntes, não para gastos desta natureza. Só em traduções para cartas rogatórias enviadas para países terceiros, o tempo que demora e a dificuldade que é! E cada vez mais com os tradutores a recusar o valor que custa do regulamento de custas processuais que é um valor muito inferior ao preço de mercado de uma tradução daquela natureza.