A conclusão está espelhada nas investigações feitas por quem trabalha no terreno com as poucas centenas de refugiados que vivem Portugal. Olhando para a crise migratória que assola a Europa actualmente, a antropóloga Cristina Santinho defende que o país tem capacidade para receber bem mais que os três a cinco mil refugiados de que se fala, mas deixa um alerta: as instituições estatais não estão preparadas. Falta uma rede que articule os vários serviços, faltam técnicos e falta formação específica para lidar com esta realidade. A investigadora deixa ainda uma sugestão: que os refugiados que já cá estão ajudem a integrar os que virão.
Cristina Santinho é investigadora do Centro de Investigação em Antropologia do ISCTE e está actualmente a desenvolver o projecto de pós-doutoramento "Refugiados: vulnerabilidade, resiliência e inclusão numa sociedade democrática, em contexto de crise socioeconómica". Um projecto que já a ocupa há três anos e que se prolongará por outros tantos. Se nada for alterado nas instituições estatais, os dados que tem recolhido fazem-na "recear quanto à nossa capacidade de integração dos refugiados que hão de vir".
Portugal é dos países europeus que menos refugiados recebe. Ainda assim, as conclusões das investigações que tem feito no terreno apontam para falhas nesse acolhimento.
Aqueles que existem cá em Portugal são pouquíssimos. Se compararmos índices de acolhimento de refugiados em todos os países da União Europeia, Portugal nem sequer aparece. Por vários motivos: porque está na ponta da Europa, porque nem sequer é conhecido pela maior parte dos refugiados. Muitas vezes vêm cá parar por acaso, em particupar as famílias de refugiados reinstalados, que são trazidos para cá em parceria entre o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e o Estado português. Eu arriscaria falar em, no total, à volta de 400 pessoas em Portugal, incluindo famílias, pessoas isoladas e menores não acompanhados, que se diluem totalmente no universo da sociedade portuguesa. Mesmo assim, sendo tão poucas, têm imensas dificuldades.
Que tipo de dificuldades?
Claro que existem muitos casos de sucesso, casos de refugiados, homens e mulheres, que já conseguiram a sua cidadania portuguesa, que têm várias profissões e se diluem na sociedade portuguesa. Não estou a falar desses, que são uma minoria. Estou a falar de todos os outros, sobretudo com famílias, que não conseguem ter os apoios do Estado suficientes para uma boa integração - em termos de equivalência à formação profissional que tinham anteriormente, por exemplo. Esta dificuldade de acompanhamento coloca-os na última linha de acesso ao mercado de trabalho. Por várias razões, sobretudo a ausência de uma estrutura contínua de aprendizagem e formação em língua portuguesa.
São empurrados para a dependência do subsídio, que é ridículo. Estamos a falar de cerca de 170 euros por mês por pessoa. Acompanho muitas famílias, durante a minha investigação, que são compostas por cinco ou seis pessoas, um casal e os repectivos filhos, com 500 e tal euros. Em que é que isto difere de famílias portuguesas que recebem o equivalente? Muito. Há imensas diferenças. Estes refugiados não têm redes familiares e sociais de apoio, não têm absolutamente ninguém que os ajude. Estão completamente isolados. Desse subsídio têm que pagar a habitação, a alimentação, a escola dos filhos, os livros, os transportes, os medicamentos. Nenhum dos refugiados que eu conheço - e conheço a grande maioria dos que já cá estão - pretende depender do subsídio. De modo nenhum. Aliás, eles sentem que não têm dignidade. Eles pretendem colaborar activamente para a sociedade que os acolheu, mas que infelizmente não os sabe integrar.
Algumas das deficiências no acolhimento identificadas nas suas investigações passam por limitações no acesso ao sistema de saúde, falta de promoção de autonomia, dificuldades no acesso ao mercado de trabalho e falta de representação legal. Preocupa-a que essas lacunas se agravem para os três mil que podem agora cá chegar?
Após a Segunda Guerra Mundial recebemos muitos refugiados. Não é nada de novo. É importante percebermos que nada disto é novo na Europa e também não é novo em Portugal. Mas relativamente aos refugiados que já cá estão e àqueles que hão de vir, preocupa-me. Se são tão poucos e as instituições responsáveis pelo seu acolhimento não conseguem desenvolver os mecanismos apropriados para os apoiar, o que fará com os outros?
Esses mecanismos passariam, por exemplo, por articulação entre os serviços. Segurança Social, Instituto do Emprego e Formação Profissional, Ministério da Saúde, Ministério da Educação, mas também o poder local, as câmaras municipais, as organizações não governamentais - inclusivamente as universidades, que têm estudos realizados nesta matéria e poderão dar algumas pistas de como melhorar todos estes procedimentos. Só que até agora isso não é feito. A nível de todo o país, nas capitais de distrito onde os refugiados que já cá estão vivem, não têm tido capacidade para desenvolver esta rede de forma eficaz.
Por que é que isso acontece?
No âmbito das minhas investigações tenho falado bastante com estas instituições do Estado e é muito curioso perceber por que é que tal não é feito. Está longe de ser por falta de vontade dos responsáveis das instituições. Eles gostariam de poder contribuir para uma maior eficácia na integração, mas são muitas vezes confrontados com a indisponibilidade de tempo. O mesmo técnico da Segurança Social ou do Instituto do Emprego e Formação Profissional tem que dar resposta aos refugiados, aos sem-abrigo, às vítimas de violência doméstica, etc. Isto também tem a ver com o encurtamento dos funcionários públicos nas instituições, com a magreza do tecido laboral dentro das instituições.
Se o que está a acontecer com estes 300 ou 400 refugiados que vivem em Portugal passasse a acontecer com aqueles três mil que vêm, é evidente que os problemas seriam muitos.
A investigação de pós-doutoramento em que está a trabalhar desde 2013 foca-se na questão da "vulnerabilidade, resiliência e inclusão" dos refugiados "numa sociedade democrática, em contexto de crise económica". Este contexto actual do país afecta a disponibilidade dos portugueses para acolher?
Sim e não. Por um lado, têm surgido nas últimas semanas muitas manifestações de apoio aos refugiados. Muitas pessoas dizem "vamos ajudar", de forma abstracta, mas depois quando se trata de estruturar essa mesma ajuda e torná-la real, provavelmente só 10 ou 20% das pessoas que se manifestaram solidárias vão conseguir concretizar. E parte dessa dificuldade tem exactamente a ver com a crise que vivemos. E que eu acho que não está ultrapassada, lamento.
Não podemos esquecer que estamos em período de campanha eleitoral, há várias leituras [da realidade do país], uma delas é a dos números. Como investigadora também sei como é fácil manipular as estatísticas. A realidade das pessoas diz-nos o contrário. É essa dificuldade de sobrevivência de muitas, muitas famílias portuguesas que também nos pode dar o reverso da medalha relativamente a esta situação de ser ou não solidário, ter ou não medo de apoiar e de ajudar os refugiados. E há outra questão: arriscaria a dizer que grande parte da população portuguesa tem uma deficiência educativa muito grande. Grande parte dos programas escolares não são adequados para integrar, por exemplo, alunos de várias proveniências sociais e culturais. Não tendo as pessoas informação aprofundada e credível do ponto de vista histórico e cultural sobre estas realidades, estando cada vez mais assustadas com a sua própria sobrevivência, é natural que surjam fenómenos de rejeição.
O que falta para garantir que o acolhimento é bem feito?
O acolhimento até é a fase mais simples, apesar de não parecer. É a inserção que é muito mais difícil. É essencial que o Estado dê meios às suas próprias instituições estatais para poderem operar convenientemente - e isso significa mais trabalhadores, mais funcionários a trabalhar nestes organismos, como a Segurança Social e o Instituto do Emprego. Segundo passo, trabalhadores que tenham tido formação específica sobre o que são os refugiados e as migrações forçadas para que saibam que realidade é que estão a encarar. Terceiro: criar uma estrutura em rede com as organizações locais e com os municípios e ONGs. Quarto: incluir os refugiados que já cá estão como assessores, como alguém que conhece perfeitamente as necessidades, que já conhecem a sociedade portuguesa e que podem servir como mediadores socio-culturais.
É preciso criar uma estrutura de mediação que não existe. Numa primeira fase, mesmo a nível de tradução da língua, são um recurso fabuloso e que pode ser utilizado. E a boa notícia é que eles estão totalmente disponíveis para serem contratados para o efeito. Eles estão no desemprego, estão a viver de subsídios, têm capacidades únicas que os portugueses não têm - portanto, até esse medo de que venham retirar os empregos aos portugueses não se põe. Sabem falar sírio, árabe, francês, iglês, línguas autóctones dos países africanos... Felizmente, a sociedade portuguesa está a mobilizar-se para criar uma rede de apoio. Por que não contratá-los?
Nas conclusões das suas investigações fala-se em excessivo assistencialismo social como consequência dessa falta de conhecimento dos técnicos. No artigo "Afinal, que asilo é este que não nos protege" (2013) conclui que, "não estando suficientemente preparadas para integrar a diferença", estas instituições "acabam por remetê-los para um silêncio sofredor, condicionando-os sistematicamente a um de dois papéis: o de vítimas das violências passadas que os tornaram impotentes e passivos, ou o de oportunistas que pretendem usufruir abusivamente de um sistema de protecção social".
Há toda uma nebulosa de confusões e más interpretações, fruto de desconhecimento e deformação técnica para atender os refugiados. Por exemplo, a partir do momento em que entram no caldeirão da dependência de subsídio passa-se logo a infantilizar as pessoas, tratando-as por "tu", dizendo "faz favor, amanhã estás cá às tantas horas. Ai, ai, ai se não apareces". É inacreditável o que eu tenho escutado por esse país fora.
Outro exemplo: a questão dos telemóveis. Várias assistentes sociais que lidam com os refugiados me vieram dizer "pois, pois, eles não têm dinheiro para pagar a casa mas têm o telemóvel". Isto também é fruto de um enorme desconhecimento. Quando eu comecei a fazer o meu doutoramento ia quase todas as semanas ao Conselho Português para os Refugiados. Um dia cheguei à sala de convívio do centro, na Bobadela, e vi uma série de jovens recentemente chegados, todos à conversa uns com os outros - pensava eu. Quando reperei bem percebi que todos eles falavam línguas diferentes e que todos eles estavam a falar com o seu próprio telemóvel.
O telemóvel constitui o único bem que eles possuem. Não têm mais nada, muitas vezes não têm roupa, não têm bens próprios, perderam tudo na viagem para cá. É o único bem precioso que eles possuem e que lhes permite ter contacto com as famílias que deixaram para trás.
Um desconhecimento que se estende depois ao cidadão comum...
Há muita gente que tem receio, que diz que devemos é ajudar os nossos, os sem-abrigo, mas isto é fruto do desconhecimento. Nesta sociedade global em que vivemos não há o "nós" e o "eles", é uma ilusão pensarmos que eles são diferentes de nós e que temos é que ajudar os nossos. As pessoas que dizem isso são as primeiras a não ajudar o sem-abrigo ou a não terem manifestações de solidariedade para com as pessoas que vivem em estado de pobreza em Portugal. Acho que há um bocadinho de hipocrisia e muito desconhecimento da realidade.
Quando nós, antes do 25 de Abril, tivemos que emigrar massivamente para França - e foi cerca de um milhão -, será que os franceses temeram que nós os obrigássemos todos a dançar o vira e a comer pão com chouriço e vinho tinto? É uma ilusão pensar que "eles" vêm aí e que nos vão invadir e alterar os valores tradicionais da sociedade portuguesa. Isso não existe.
Parece haver uma preocupação de muitos cidadãos com eventuais dificuldades de integração dos muçulmanos, por exemplo.
De todo. Os refugiados que eu conheço, já há tantos anos, à sexta-feira vão à mesquita. A maioria deles. Outros não, porque até são católicos. Outros até nem têm religião nenhuma. Vêm da Eritreia, Somália, Iraque, Irão, Afeganistão, Síria, Guiné-Conacri... Nunca vi pessoas mais respeitadoras da nossa cultura tradicional portuguesa do que eles. Não houve nunca um único confronto ou choque pelo facto de eles virem de culturas diferentes. Até porque a noção de cultura, neste momento de globalização, é algo de muito plástico, muito adaptável, as pessoas estão em constante mobilidade, não é algo que esteja cristalizado no tempo.
Mas há o fantasma do terrorismo. Não faltam artigos de opinião e comentários a notícias e nas redes sociais a questionar se não haverá terroristas a viajar entre os refugiados.
Ainda há dias António Guterres, o alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados, dizia que os terroristas, se quiserem, vêm de avião. De facto, não passa pela cabeça de ninguém que os terroristas do auto-proclamado Estado Islâmico tenham que se sujeitar a morrer no oceano para conseguir chegar à Europa. E eles não conseguiram infiltrar-se nos vários países da União Europeia muito antes deste drama dos refugiados? Em França, Itália, até em Portugal... Temos visto notícias de jovens que aderiram por vontade própria ao Estado Islâmico. Essa é uma falsa questão. É mais um fantasma.
Neste momento, parece que estamos a ser invadidos, o que é uma falsíssima questão. Mesmo que a Europa recebesse os quatro milhões de refugiados sírios que existem actualmente - que não vai receber - isso corresponderia a 0,08% da percentagem da população europeia. São filmados em massa, a encher os barcos e a atravessar as fronteiras, mas às vezes é preciso usar os números para perceber que, diluídos por todos os países europeus, desaparecem.
Há outra passagem no seu artigo "Afinal, que asilo é este que não nos protege?" que diz que os migrantes forçados nos confrontam "com as nossas próprias assunções ideológicas, morais e éticas" e que nos levam "a questionar quem somos". Que Europa é esta que está a ser forçada a olhar-se ao espelho?
É uma Europa que perdeu os seus valores humanistas, perdeu os seus valores de solidariedade, perdeu a noção do que é a dignidade humana. É uma Europa que me provoca bastante medo. E essa Europa é composta por todos aqueles Estados que são governados por princípios baseados em interesses profundamente neoliberais e que deixaram de valorizar as necessidades humanas, o bem-estar da população. Vivem em função dos mercados, do lucro, deixaram de viver em função das necessidades da população. Enquanto sociedade, deveria continuar a ter os mesmos princípios de quando foi formada a União Europeia, que são os princípios da dignidade humana. E portanto é uma Europa que me assusta.