O Deus que se esconde em Turner
07-05-2021 - 06:49


Há dias, na revista do Expresso, Jorge Calado recordou um dos grandes pintores da modernidade e, sem dúvida, um dos meus favoritos: Turner, o grande retratista do mar e dos navios. Se eu tivesse de isolar cinco ou dez quadros, o “Fighting Temeraire” (que podem ver ao alto) estaria de certeza nesse lote restrito.

Porque é que nos fixamos num quadro e não noutro? Porque é que gostamos de um pintor e não de outro? Muitas vezes, quase sempre, não sabemos explicar o porquê; trata-se de uma adesão imediata e emocional, pois os quadros comunicam com o nosso inconsciente através da linguagem escondida e não verbal dos sonhos: símbolos e imagens.

Mas o que salta à vista neste "Temeraire" de 1839? Qual é o código escondido? A meu ver, o código está no contraste entre a beleza do velho navio à vela, o Temeraire, e a fealdade do rebocador a vapor. A modernidade do ferro, da chaminé e do vapor é muito menos elegante do que a antiguidade do mastro, da vela, da madeira. Ou seja, quando se torna autónomo, quando descobre uma tecnologia que lhe permite navegar sem prestar cartão ao vento e às marés, o homem faz coisas menos elegantes; ganha poder e explosão, mas perde beleza. Porquê? Esta ideia ou mistério está presente em muitos livros sobre o mar. Na “Campanha do Argus”, Alain Villiers não esconde o imenso fascínio pela frota branca portuguesa; em meados do século XX, os portugueses continuavam a fazer a pesca do bacalhau em elegantes lugres e não em desajeitadas embarcações a motor. Em “Nós, os Afogados”, a saga dinamarquesa do mar, Carsten Jensen mostra de igual modo o desencantamento do mundo produzido pelos navios a vapor.

Porque é que as linhas de um navio feito para navegar à vela são mais belas do que as linhas de um navio com um motor? Porque é que um navio independente da natureza para a sua locomoção é mais desajeitado do que um navio à vela? Porque é que, apesar de toda a tecnologia que temos no mar hoje em dia, ficamos fascinados pelos velhos navios à vela como o Sagres, o Argus, o Temeraire, o Victory do Nelson? Deixamos o quê pelo caminho quando construímos uma tecnologia que é cem por cento independente da natureza? Perdemos a ideia de comunhão com essa natureza? Perdemos uma noção de transcendência e de respeito pela nossa posição humilde na ordem das coisas?