Pragmática, prudente e, por vezes, bastante polémica. Angela Merkel está de saída da política ativa. É uma saída calma.
Em Portugal, ainda estão frescas as memórias de quando Merkel, durante a crise do euro e as intervenções da troika, exigiu aos parceiros da União Europeia (UE) que fizessem os "trabalhos de casa". Mas uma recente pesquisa do European Council on Foreign Relations mostra que os portugueses estão entre os três primeiros povos europeus que escolheriam Merkel para um cargo de "presidente" da Europa. Na Alemanha, a chanceler continua a ser a política mais popular.
Dois terços dos eleitores estão satisfeitos com o trabalho da chanceler nos últimos 16 anos, segundo uma sondagem publicada este verão.
"Em termos gerais, os alemães gostam de alguém que lhes inspire confiança e que se paute pela estabilidade. É por isso que a chanceler foi popular durante tanto tempo", afirma o politólogo Manuel Becker em declarações à Renascença.
A chanceler não teve "grandes visões ou ideologias", mas trouxe "calma" e geriu "bastante bem" as crises dos últimos anos na Alemanha e na União Europeia, comenta Stefan Kornelius, um dos biógrafos de Merkel.
Porém, foi também no tempo de Merkel que o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD) entrou para o Parlamento federal, e não dá sinais de sair. Em setores como o digital, a Alemanha está hoje bastante atrás de outras nações, porque, dizem os críticos, se "poupou demasiado" durante os mandatos de Merkel. E na UE ainda há feridas por sarar.
O "enigma" Angela Merkel
Antes de Merkel, os jornais e as revistas costumavam dissecar as aventuras e desventuras privadas do chanceler Gerhard Schröder, que chegou a envolver-se numa polémica com uma agência de notícias por causa de um artigo sobre a sua cor de cabelo.
Angela Merkel é bastante mais discreta. Sabe-se que a chanceler casou duas vezes e não tem filhos, gosta de jardinagem e de óperas de Wagner, composições de Bach, mas pouco mais.
Annette Schavan, amiga de longa data de Merkel, conta que, longe dos holofotes da vida pública, Merkel é uma pessoa séria e atenta àqueles que a rodeiam: "É também uma pessoa muito alegre. No seu círculo de amigos, essa alegria e vivacidade é visível. O peso do cargo não a tornou insensível", diz em entrevista à Renascença.
A ascensão de Angela Merkel à chefia do governo federal foi meteórica.
Filha de um pastor luterano e de uma professora de latim e inglês, a chanceler nasceu em Hamburgo, na Alemanha Ocidental, mas cresceu em Templin, uma localidade na Alemanha de Leste com cerca de 16 mil habitantes. Estudou Física na Universidade de Leipzig e entrou para a política logo após a queda do Muro de Berlim, em 1989. Começou como porta-voz do movimento "Advento Democrático" e, pouco depois, foi nomeada para chefiar o Ministério da Mulher e Juventude pelos conservadores da CDU. Helmut Kohl era chanceler.
"Ainda me lembro do meu primeiro encontro com Helmut Kohl na chancelaria federal. Foi na campanha de 1990. Helmut Kohl perguntou-me, no seu modo inigualável, 'como é que eu me entendia com mulheres'. Esperara tudo menos isso", recordou Merkel, em 2012, durante um evento da fundação Konrad Adenauer, ligada ao seu partido, a CDU.
"Respondi-lhe: 'bem… sem grandes problemas'. Mais tarde percebi o motivo da pergunta quando o chanceler Kohl me nomeou como ministra da Mulher e da Juventude."
Quatro anos depois, Merkel passou a chefiar o Ministério do Ambiente. Na altura, ela era rotulada como a "menina de Kohl", mas isso durou pouco tempo. Em 1999, quando Kohl se viu envolvido num escândalo de doações ilegais ao partido, Angela Merkel revoltou-se contra ele e escreveu um artigo de opinião no jornal “Frankfurter Allgemeine”. O artigo marcou uma viragem na CDU.
A revolta de Merkel
"O partido tem de aprender a andar e a confiar em si mesmo sem o seu velho cavalo de guerra, como Helmut Kohl se gostava de referir a si próprio. […] Como alguém que está na puberdade, [a CDU] tem de sair de casa e percorrer os seus próprios caminhos", escreveu Angela Merkel.
Foi o que ela fez. Em 2005, Merkel foi a primeira mulher a ser eleita como chanceler da Alemanha, e também a primeira da Alemanha de Leste. Ficou no cargo 16 anos, os mesmos que Helmut Kohl.
"Em 2017, ela ainda ponderou se se deveria ou não recandidatar. Acho que foi uma conversa com [o ex-Presidente norte-americano] Barack Obama que a convenceu a fazê-lo, por causa da situação mundial na altura. Mas há uma altura em que é preciso parar. Angela Merkel fez 67 anos", lembra a amiga Annette Schavan.
Merkel sai da política pelo próprio pé, contrariamente ao que aconteceu com o seu mentor: "De facto, é a primeira chefe de governo na Alemanha que não se demitiu nem perdeu as eleições", frisa Schavan.
A chanceler “pragmática” das muitas crises
Como é que Angela Merkel ficará conhecida? Certamente pelo seu papel como gestora de crises, diz o professor Manuel Becker, da Universidade de Bona.
"Os seus mandatos não ficaram tanto marcados pela execução de um grande projeto político, mas mais pela gestão de quatro grandes crises": a crise financeira e a crise do euro, a crise dos refugiados e a crise pandémica.
"Foram desafios imprevistos e circunstanciais que caíram na mesa da chanceler, a que ela teve de reagir de forma pragmática e objetiva", diz Becker.
Mas Angela Merkel também foi alvo de muitas críticas. Basta lembrar os protestos contra a chanceler durante a crise do euro. Com a Grécia ou Portugal a precisarem de um resgate financeiro para poderem pagar as suas dívidas, Merkel estabeleceu pré-condições: resgate, sim, mas só se os países se comprometessem a implementar políticas de austeridade para sanear as contas públicas.
"Na Europa, temos de fazer tudo o que pudermos para pôr as coisas em ordem", disse a chanceler na altura. "Temos muito trabalho pela frente, mas não vejo motivos para pessimismo. Ainda assim, é preciso que, na Europa, todos se esforcem e façam os seus trabalhos de casa."
Estas palavras revoltaram muita gente. Em Portugal, na Grécia, em Espanha, milhares de pessoas foram para as ruas protestar contra o "diktat" alemão. Houve manifestantes que queimaram fotografias da chanceler. Merkel chegou a ser comparada a Adolf Hitler. Na Grécia, o partido anti-austeridade Syriza venceu as eleições em 2015. Em Portugal, o líder socialista António Costa montou uma "geringonça" para tentar "desapertar o cinto".
O jornalista Stephan Hebel diz que as imposições da Alemanha aos parceiros europeus foram um "descaramento".
"Quando a senhora Merkel fala em fazer os trabalhos de casa, são trabalhos de casa em nome dos interesses alemães, de um país industrial exportador. Exagerando um pouco, isto significa que o Estado português teve de reduzir as despesas sociais para que os portugueses pudessem pagar os Volkswagen alemães. É esta a política que a Alemanha impõe aos europeus."
É uma crítica antiga: a Alemanha e os alemães poupam, poupam, poupam, e acabam por consumir menos do que produzem. O excedente é vendido aos outros países, a preços atrativos. O euro facilita as compras. Mas há um outro lado da moeda.
"Se há uma moeda comum e economias distintas concorrem umas contra as outras - mas já não têm um mecanismo de valorização ou desvalorização, porque só há uma moeda - aumentam as desigualdades, por exemplo entre a Alemanha e a Grécia, Espanha ou Portugal", avalia Hebel.
"A Europa tornou-se um lugar em que há uma competição entre nações que têm uma moeda internacional. É uma contradição que a chanceler não resolveu nem quis resolver."
Merkel, a chanceler europeísta
Com uma exceção, talvez: já no final do mandato, Merkel deu "luz verde" à "bazuca" europeia - centenas de milhares de milhões de euros para revitalizar as economias dos Estados-membros após meses a fio de confinamento por causa da Covid-19.
No ano passado, a chanceler frisou, numa mensagem à nação, que isso também é do interesse da Alemanha.
"Porque nós sabemos que, a longo prazo, a Alemanha só pode estar bem se a Europa estiver bem. Não podemos ser fortes industrial e economicamente, ter altos níveis de emprego, se a economia colapsar noutros países", afirmou.
A austeridade antes defendida pela chanceler pode também ter sido o remédio certo na hora certa, preparando a zona euro para os choques futuros.
O politólogo Manuel Becker sublinha que Merkel é uma forte defensora do projeto europeu: "Sei que não só em Portugal, como também em vários países do sul da Europa, Angela Merkel e a Alemanha como um todo foram muito mal vistas, porque insistiram em reformas políticas atrozes, que implicaram duros cortes. Mas, para Angela Merkel, nunca esteve em causa expulsar países da zona euro ou excluí-los de alguma forma da UE."
As cimeiras em que Merkel e os outros líderes europeus esgrimiam argumentos pela noite fora são lendárias. Como a cimeira de 2015, em que a zona euro aprovou o terceiro resgate da Grécia após 17 horas de negociações.
Quando o acordo foi anunciado já o sol tinha nascido em Bruxelas. A seguir, Merkel deu uma conferência de imprensa. Os olhos da chanceler denunciavam cansaço, mas, em frente aos jornalistas, Merkel esboçou um sorriso e resumiu o mais importante sobre o acordo: "Encontrámos aqui formas de fazer com que as vantagens superem as desvantagens".
"Típico Merkel", diria Annette Schavan, da CDU.
A chanceler gosta de "explorar todas as opções até se chegar a um compromisso e acredita que ninguém deve sair da mesa de negociações a sentir-se derrotado", explica Schavan.
O salto de Merkel no trampolim
Há um episódio da infância da chanceler que costuma ser citado para explicar a forma como ela reage aos problemas: Merkel andava na escola, tinha nove anos. Durante uma aula de natação, o professor quis saber quem conseguia saltar do trampolim dos três metros. Merkel subiu ao trampolim, olhou para a piscina, mas hesitou. Não se mexeu durante 45 minutos, a ponderar os prós e contras.
A campainha tocou. Só então é que Merkel saltou, de cabeça.
Esta prudência - mas também coragem - são caraterísticas que definem a chanceler até hoje, afirma o biógrafo Stefan Kornelius.
"Angela Merkel é altamente objetiva. Ela olha de forma sóbria para os problemas, dividindo-os em problemas mais pequenos, que tenta depois resolver ou simplificar. É uma cientista. Sempre foi muito cuidadosa. Nunca arriscou. Prefere sempre analisar a situação antes de tomar decisões."
Nisso, Angela Merkel não foge muito à linha de outros chanceleres, acrescenta Kornelius.
"Depois da II Guerra Mundial houve uma forte 'objetificação' da política alemã", menciona. "O chanceler Konrad Adenauer também não foi um grande ideólogo, embora tenha promovido a abertura da Alemanha à NATO e à Comunidade Económica Europeia. Helmut Kohl deu um passo corajoso, a reunificação, mas também porque reconheceu que, historicamente, não havia alternativa. Angela Merkel foi, talvez, de todos os chanceleres a mais objetiva."
Talvez por isso, ao longo dos 16 anos na chancelaria federal, Angela Merkel não tenha tido medo de reavaliar as suas próprias políticas, fazendo por vezes viragens de 180 graus.
A chanceler era, por exemplo, contra a introdução de um salário mínimo fixado pelo Governo, mas mais tarde mudou de ideias. Antes uma forte defensora da energia nuclear, Merkel mandou encerrar todas as centrais nucleares na Alemanha a seguir ao desastre de Fukushima, em 2011. Foi também com Merkel na chancelaria que acabou o serviço militar obrigatório, antes algo impensável para os conservadores da CDU.
"Como grande partido centrista, sem uma visão ideológica dogmática, mas sempre baseados na mesma bússola, reavaliámos constantemente soluções antigas, trazendo respostas adaptadas às realidades do quotidiano. É isso que faz da CDU um partido forte", declarou Merkel durante um congresso em 2011.
Pouco a pouco, com Angela Merkel na liderança, o partido de direita foi-se deslocando cada vez mais para a esquerda, tentando agradar a eleitores dos dois lados.
Segundo o politólogo Manuel Becker, a chanceler "é um pouco como a agulha da bússola. Se o centro do eleitorado vira um pouco para a esquerda, ela vai atrás. Se vira para a direita, ela segue a agulha. Isso explica, em parte, o seu sucesso."
Mas a estratégia provocou uma reviravolta no sistema político alemão.
A ascensão da extrema-direita
Tanto os conservadores de Merkel, como os sociais-democratas (parceiros de coligação dos conservadores em 12 dos 16 anos de Merkel na chancelaria) foram caindo nas intenções de voto e, a partir das eleições de 2017, os assentos mais à direita no Parlamento alemão passaram a ser ocupados por um novo partido, a Alternativa para a Alemanha (AfD).
"Parte do legado da era Merkel é a existência de um partido populista de direita no Parlamento, a AfD", enfatiza Manuel Becker.
A AfD insurgira-se contra o acolhimento de centenas de milhares de refugiados da Síria, do Afeganistão e do Iraque, em 2015.
Nesse ano, muitos alemães foram esperar os refugiados ao comboio com cartazes de boas-vindas, distribuindo água e comida. A chanceler assegurou que a Alemanha tinha os meios necessários para acolher todas essas pessoas. Três palavras que Merkel disse em agosto de 2015 ficaram para a história: "Wir schaffen das" - "Nós vamos conseguir."
Mas parte dos eleitores sentiu que estava a ser relegada para segundo plano com a chegada dos refugiados. A AfD apresentou-se como o único partido capaz de travar a política de migração da chanceler.
Contudo, Annette Schavan, da CDU, pergunta: o que teria acontecido se o governo não tivesse ajudado aquelas pessoas? "Em última análise, Angela Merkel liderava um partido cristão e aquela era a hora da verdade", refere.
Merkel "não tinha outra opção", acrescenta Schavan, e recebeu os refugiados "plenamente convicta, sabendo que haveria resistência, também na Europa. Por outro lado, assumiu um papel de liderança no continente, porque os países europeus sabiam - muito antes de setembro de 2015 - que era preciso uma política de migração europeia convincente e que [por exemplo] os italianos lidavam há demasiado tempo sozinhos com esta questão".
Nos últimos anos, a Alemanha endureceu a legislação sobre asilo político.
Para o jornalista Stephan Hebel, é por esse e por outros motivos que a Europa está mais dividida do que quando Merkel chegou à chancelaria federal, há 16 anos.
"Não acho que Angela Merkel seja a única responsável, mas acredito que os governos de Merkel contribuíram para que isso acontecesse", comenta Hebel. "Primeiro, por causa dos desequilíbrios económicos. Segundo, por causa da sua política de refugiados. Pessoas que vêm para a Europa são paradas nos países com fronteiras externas, e a Alemanha fica a olhar do centro da Europa e não ajuda."
Essa inércia estende-se a outras áreas no país, continua o jornalista.
Hebel aponta para os problemas por resolver nas infraestruturas - há muitas estradas e caminhos de ferro que estão por reabilitar (os atrasos nos comboios alemães são constantes) e, por exemplo, a rede de fibra ótica ficou por desenvolver. Na Alemanha, a percentagem de ligações de internet com fibra ótica é uma das menores da OCDE (5,4%), Portugal está bastante mais à frente (55%).
Stephan Hebel reconhece, contudo, que há um aspeto positivo na política económica de Merkel, no capítulo "mulher e família".
"Houve, por exemplo, uma grande expansão do sistema de cuidados infantis", assinala.
Neste ponto, Annette Schavan, da CDU, está em sintonia com o jornalista. "Conseguiu-se muito, embora estejamos longe de ter uma equivalência em relação à percentagem de mulheres na sociedade".
Uma mulher chanceler
"Hoje há mulheres em posições de liderança. Por exemplo, como reitoras de universidades. E um grande desenvolvimento é o facto de já ninguém se rir quando uma rapariga diz que quer ser chanceler. Agora, isso já é possível", recorda Schavan.
Nas eleições do próximo domingo, 26 de setembro, o candidato do partido de Merkel à chancelaria federal é um homem: Armin Laschet. Mas é uma mulher - Annalena Baerbock - a cabeça de lista dos Verdes. Foi por isso que, em junho, no Parlamento, uma deputada dos Verdes perguntou à chanceler se gostaria de ver uma mulher novamente no cargo.
Merkel fez uma pausa, sorriu e olhou para a deputada: "Olhe, acho que, depois de 16 anos de Angela Merkel, as cidadãs e os cidadãos são responsáveis o suficiente para decidirem quem querem como próximo chanceler", respondeu.
É assim que Angela Merkel sai da chancelaria federal. Calmamente, bem-humorada, confiante.
Num debate com a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, no início de setembro, a chanceler referiu que está de consciência tranquila. "Creio que dei o meu contributo. Quem não percebeu isso até agora também não perceberá nos próximos quatro anos", afirmou.
Seja como for, agora começa um novo capítulo.