Trump opta pela economia em vez da saúde e quer o país a funcionar de novo na Páscoa
24-03-2020 - 21:42
 • José Alberto Lemos, correspondente nos EUA

O presidente americano está mais preocupado com a recessão económica do que com a saúde dos seus concidadãos. E por isso quer reverter as restrições sociais impostas pelo combate ao coronavírus já na Páscoa. Os americanos mais novos devem ir trabalhar porque o país não pode estar fechado, diz Trump. O mundo empresarial concorda.

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Pouco mais de uma semana foi quanto durou a contenção do mundo dos negócios americano. Uma semana após terem sido tomadas medidas restritivas por causa do coronavírus, e apenas com quase metade dos americanos sob medidas de circulação limitada, a Corporate America fez sentir a sua força e começou a forçar uma reversão nas medidas de prevenção contra a epidemia.

Com um dos seus mais estrénuos defensores na Casa Branca, o mundo empresarial americano olha para os negócios antes de olhar para qualquer outro lado e no dilema entre salvar vidas ou salvar a economia não hesita. O coração de Donald Trump está com eles. A cabeça é que poderá não estar, mas para um presidente que se gaba de ter seguido sempre os seus instintos isso pode não ser grande dilema.

O primeiro sinal público foi dado na segunda-feira à noite (madrugada de terça em Portugal), no habitual briefing na Casa Branca, quando Trump disse que “o nosso país não foi construído para estar fechado. Vamos abrir o país aos negócios porque o país não foi feito para estar fechado”. E acrescentou que estará a funcionar “muito em breve”, depois de desvalorizar a posição dos cientistas e epidemiologistas. “Se for pelos médicos, eles vão dizer ‘vamos manter fechado — vamos manter fechado o mundo inteiro por alguns anos”. Mas “não podemos fazer isso, não podemos permitir que a cura seja pior do que o problema”. E voltou a comparar com a gripe e os acidentes de automóvel que “matam mais gente” todos os anos.

E já nesta terça-feira, em entrevista à Fox News, Trump precisou que quer o país reaberto na Páscoa, manifestando preocupação pelas regras de distanciamento social e o fecho das empresas estarem a ir demasiado longe.

São declarações que refletem as pressões a que Trump tem estado sujeito nos últimos dias provenientes de empresários, de deputados e senadores republicanos, de economistas conservadores e de membros da sua própria administração, que têm provocado um vivo debate na Casa Branca. Homens como o secretário do Tesouro, Steve Mnuchin, e o conselheiro económico nacional, Larry Kudlow, têm sido os principais arautos da tese da urgência em relançar a economia, assumindo-se como porta-vozes dos interesses empresariais um pouco por todo o país.

As constantes descidas das bolsas — que já pulverizaram todas as subidas que tinham registado desde que Trump foi eleito e estão agora em níveis mais baixos do que quando tomou posse — e as perspetivas económicas de curto prazo estão na base desses receios. Segundo algumas estimativas, o PIB pode contrair 24% no próximo trimestre e o desemprego poderá atingir os 13%, partindo dos atuais 3,5%, um número historicamente baixo.

Os negócios da família

Estes são os “argumentos” mais poderosos para convencer Trump, não só porque se dirigem diretamente ao seu instinto e à sua principal preocupação/obsessão, mas também porque faltam oito meses para as eleições e o seu principal trunfo é justamente a economia. Se a situação económica se deteriorar seriamente, o que parece inevitável, quase toda a propaganda política que o sustenta cai pela base. Quase todos os argumentos de sucesso da sua presidência proclamados aos quatro ventos por si e pelos seus apoiantes assentam no bom desempenho económico do país, desvalorizando sistematicamente tudo o resto que aconteceu nestes quase quatro anos.

Mas há ainda uma outra razão poderosa que lhe fala diretamente ao coração e… à carteira. Que neste caso se confundem. Desde que a crise começou, o seu grupo empresarial já teve de fechar seis complexos turísticos: dois na Florida, incluindo o célebre Mar-a-Lago, onde passava os fins-de-semana a jogar golfe, um em Las Vegas, um em New Jersey, um na Irlanda, e um na Escócia. Em conjunto, estes resorts turísticos rendem à família Trump 174 milhões de dólares por ano e alguns deles fecharam por imposição das autoridades locais, não por vontade dos proprietários.

Outros empreendimentos hoteleiros em Nova Iorque, Washington e Chicago, estão a enfrentar dificuldades, nomeadamente com o fecho dos respetivos restaurantes. Só no hotel de Washington DC, que se tornou o centro dos encontros sociais do “trumpismo” na capital federal, foram despedidos 160 empregados, a que se juntam 51 no hotel de Nova Iorque.

Por tudo isto, Trump procura urgentemente um plano para mitigar os efeitos da crise gerada pelo coronavírus. Aquilo que parece estar em estudo no seio da administração é incentivar as pessoas com menos de 40 anos a ir trabalhar já em abril, a que se seguiriam pouco depois os que têm entre 40 e 50 anos. Duas semanas de reclusão parece ser o limite que Trump admite para manter o país fechado, sugeriu ele na Fox News.

Boa parte do “establishment” republicano pensa o mesmo e quer ver a economia a funcionar, pouco se importando com as eventuais consequências humanas da medida. O governador-adjunto do Texas disse à Fox News, na segunda-feira, que era “totalmente a favor” do levantamento das medidas de distanciamento social para ajudar a economia.

Não sacrificar o país

Dan Patrick faz 70 anos na próxima semana e admite estar entre os grupos de risco, mas entende que pessoas como ele devem ponderar entre os riscos para a saúde pessoal postos pelo vírus e os desafios para a saúde da economia americana postos pelas obrigações de distanciamento social.

“Ninguém me perguntou ainda: como idoso, está disposto a arriscar a sua sobrevivência, a trocar a sua sobrevivência pela América que ama para os seus filhos e netos? Se a troca é essa, sou totalmente a favor”, declarou, acrescentando: “A minha mensagem é, voltemos ao trabalho, voltemos à vida, sejamos inteligentes e aqueles de nós que têm 70 ou mais anos tomarão conta de si. Mas não sacrifiquemos o país”.

Note-se que para Dan Patrick sacrificar o país não é ver morrer centenas ou milhares de pessoas nas próximas semanas ou meses. É, sim, ver a economia a entrar em recessão por alguns meses. Isto num país que já teve inúmeros exemplos de recuperação económica rápida e eficaz na sua história recente.

Os indícios que surgem da parte de Trump apontam no mesmo sentido. Repor rapidamente a economia em funcionamento é a sua grande preocupação e objetivo, mesmo que isso signifique sacrificar as regras mínimas de segurança entre os cidadãos impostas pela ameaça do covid-19. Os americanos vão às urnas a 3 de novembro e para garantir a reeleição Trump tem na economia seu grande trunfo.

Com quase metade da população submetida agora a medidas de circulação restritivas declaradas pelas autoridades estaduais, os Estados Unidos estão neste momento longe de atingir o seu pico de transmissão do vírus. Todos os especialistas apontam para uma disseminação enorme da epidemia nas próximas semanas ou meses que vai provocar certamente milhares de mortos. Nesta terça-feira, havia já mais de 50 mil casos e mais de 600 mortos.

Só no estado de Nova Iorque, um dos mais afetados, o governador Andrew Cuomo revelou que a velocidade de transmissão do vírus é cinco vezes superior à dos outros estados e os casos têm duplicado a cada três dias. “Números astronómicos”, admitiu. Só na cidade de Nova Iorque há cerca de 15 mil infetados e este é um número que só pode aumentar nas próximas semanas, segundo o governador.

O combate ao coronavírus, além de ter começado tardiamente, tem sido conduzido pelos estados, com a administração federal a alijar responsabilidades. Trump, depois de andar dois meses a desvalorizar o vírus, criou uma task force liderada pelo vice-presidente Mike Pence, mas a desorientação da administração é patente. Na Casa Branca, o genro de Trump, Jared Kushner, criou uma task force alternativa que tem gerado inúmeros equívocos junto das autoridades estaduais (e não só) e que só responde perante o presidente.

O facto de serem os estados a tomar as medidas que entendem adequadas no terreno é um fator que pode minimizar o eventual impacto de uma decisão de Trump de aliviar as restrições de circulação e de distanciamento social. Se o presidente enveredar por esse caminho e quiser pôr o país a funcionar com normalidade na Páscoa adivinha-se um braço-de-ferro com muitos estados para a aplicação da medida. Por questões de princípio — a autonomia dos estados face ao governo federal. E por questões de pragmatismo — quem está no terreno sabe melhor que tipo de medidas deve aplicar a cada momento.

E, nos tempos sombrios que correm, tudo indica que a maioria dos governadores não quererá arriscar a vida dos seus concidadãos em nome do combate a uma recessão económica cujos efeitos se poderão repercutir nas eleições de novembro. Talvez só no Texas…