Questão dos abusos tem "dimensão séria e grave" e Igreja deve assumir a "dolorosa realidade"
04-09-2018 - 13:02
 • Aura Miguel com Renascença

"Vivemos em contacto com as tentações e as provocações do mundo, mais do que no passado", diz, em entrevista à Renascença, o prefeito da Congregação para o Clero. "Andamos com as tentações no bolso, ou seja, sempre que as procuramos no telemóvel."

O prefeito da Congregação para o Clero, cardeal Beniamino Stella, considera que a questão dos abusos sexuais coloca a Igreja perante uma dolorosa realidade que tem de ser assumida.

"É uma dolorosa realidade e devemos assumi-la, pois envolve alguns sacerdotes e alguns membros da hierarquia", declarou o cardeal Stella, em entrevista exclusiva à Renascença, concedida em Fátima, onde participa no Simpósio do Clero.

O cardeal diz ser óbvio que "o tema dos abusos assume uma dimensão séria e grave", mas deve ser analisado com objetividade. Pecados sempre houve, sublinha, mas agora são amplificados pela comunicação social e pela internet, "umas vezes de boa fé, outras menos". "Vivemos em contacto com as tentações e as provocações do mundo, mais do que no passado", aponta. "Costumo dizer que andamos com as tentações no bolso, ou seja, sempre que as procuramos no telemóvel."

D. Beniamino Stella está em Fátima a participar no Simpósio do Clero, promovido pela Conferência Episcopal Portuguesa e pela Comissão Episcopal Vocações e Ministérios.

É o prefeito da Congregação para o Clero num momento de dificuldades e escândalo que envolvem tantos sacerdotes e membros da hierarquia. Que palavra tem a dizer aos que estão desiludidos com esta realidade?

Estas situações não são absolutamente novas na Igreja. Pecados, sempre os houve. Jesus, no Evangelho, fala de escândalos. Faz parte da vida da Igreja e da fragilidade humana, mas hoje o que é novo é o destaque mediático que expõe às pessoas estes acontecimentos através da internet, da imprensa, da televisão, umas vezes de boa fé, outras menos. O pecado na vida da Igreja é uma dolorosa realidade, devemos assumi-la, pois envolve alguns sacerdotes e membros da hierarquia. Mas é importante não generalizar, para não causar injustiças. Neste encontro, vim dizer ao clero de Portugal que existe uma grande família de sacerdotes autênticos, fiéis, que trabalha que se empenha, que sofre, que às vezes falha e se confessa, que caminha e volta a reerguer-se. É óbvio que o tema dos abusos assume uma dimensão muito mais séria e grave, como já disse o Papa. Mas procuremos enquadrar este pecado da Igreja e este drama de hoje, com objetividade e na sua justa e correta dimensão.

Está preocupado com a qualidade do clero?

Esta pergunta devia ser feita aos bispos, porque são eles quem primeiro se confrontam com a bondade ou, por vezes, com a fragilidade dos sacerdotes. São eles que suam na linha da frente. Encontrei aqui um bispo que me disse: “tenho aqui comigo um grupo de padres, mas, infelizmente, não vieram aqueles que mais precisam”. Esta é a realidade: há os que tem vontade de se formar, de participar e de crescer, mas os que mais precisam não vêm. É o ponto fraco e a grande dificuldade dos bispos que não conseguem trazer consigo os sacerdotes mais fracos, mais frios, mais tépidos, para um processo de purificação interior como é o deste Simpósio de Clero.

O que é preciso fazer para purificar a Igreja?

Há cinco anos que o Papa fala disso. Antes de mais nada, significa rezar; significa encontrar a Palavra de Deus, viver a vida cristã e o Evangelho. É isso que fazem os bons cristãos, é isso que devem fazer os próprios padres. Contactar com a Palavra de Deus e com os sacramentos é o que ajuda os sacerdotes a superarem as dificuldades, porque todos os sacerdotes, tal como todos os cristãos, incluindo os casados têm tentações; não é só o padre que as sente, mas todos, incluindo bispos e povo de Deus. Por isso, é preciso estar bem equipado, ou seja, criar um sistema interior de imunidade, de força e resistência para, nos momentos difíceis, obscuros e de solidão, ter força interior para se interrogar: “A quem sirvo? Sirvo o Senhor ou sirvo o maligno que me está a tentar?” O Papa está sempre a dizer que os momentos de oração, de reflexão, de crescimento espiritual são indispensáveis para os sacerdotes e também para os bispos, porque os bispos têm uma responsabilidade maior com o governo da Igreja e, por isso, estão mais expostos a tantas confusões e riscos.

É mais difícil ser padre ou bispo nos dias de hoje, do que era dantes?

Acho que foi sempre difícil. Viver o Evangelho é sempre difícil, porque o Senhor leva-nos a um nível de vida onde aspiramos a coisas que não são fáceis para a natureza humana. Por isso, é fácil e difícil, mas talvez hoje os sacerdotes estejam mais expostos. Vivemos hoje em contacto com as tentações e as provocações do mundo, mais do que no passado. Costumo dizer que andamos com as tentações no bolso, ou seja, sempre que as procuramos no telemóvel. Devemos estar muito mais atentos e vigilantes, ser muito mais prudentes e humildes do que no passado, talvez porque no mundo encontramos muita presença do mal que ataca, sobretudo, os que têm responsabilidade na Igreja, responsabilidade pela Palavra de Deus e perante o povo de Deus e são chamados a serem guias e a não se deixarem arrastar para o mal.

Muitos consideram que o celibato é um problema. Haverá mudanças? Vamos ter padres casados?

É uma pergunta para a qual não tenho resposta. Devemos estar atentos à voz do Papa e ao que vai dizer os episcopados do mundo, talvez por ocasião do sínodo da Amazónia. Devemos avançar com prudência e respeito por tantos sacerdotes empenhados em viver a sua vida sacerdotal. O tema do celibato tem muito peso. É um caminho da Igreja universal que deve ser ponderado e devidamente avaliado. Creio que o Papa está muito consciente desta responsabilidade e empenho, tal como os bispos, por isso, não nos deixemos arrastar ao sabor do momento nem dos impulsos da moda.

O celibato é um grande dom do Senhor que acompanhou a Igreja ao longo dos séculos e que fez tanto bem. Há hoje muitos testemunhos disso, de tantos sacerdotes, de leigos, de tantas pessoas. Este dom é dado a poucos, mas é um dom do Senhor e quando o Senhor dá o dom, também dá os meios. São coisas que devemos tratar com seriedade e grande sentido de responsabilidade. É preciso fazer uma ponderação, sem esquecer que a Igreja é universal nas suas leis e exigências. Porque nós somos administradores do Evangelho e dos dons do Senhor, não somos os patrões.

Que frutos espera obter deste Simpósio do Clero em Portugal?

Se houver algum padre que se torne melhor e mais santo, já é um grande fruto. Estes encontros fazem bem aos sacerdotes, é como respirar ar puro, encontram-se uns com os outros e rezam juntos, vivem juntos esta fraternidade sacerdotal, com os bispos que participam, tudo isto faz-lhes bem. Depois os padres regressam às suas paróquias e comunidades e reencontram as suas dificuldades mas permanece a memória do ar puro e belo que viveram, tal como a exigência profunda de uma vida sacerdotal autêntica. Por isso, se houver algum padre que saia daqui com o desejo de melhorar a sua vida, é já motivo para agradecer ao Senhor esse fruto do Espirito Santo. Rezemos para que estes sacerdotes de Portugal mantenham vivo, no seu coração, o amor e a paixão pelo dom de Deus que receberam no sacerdócio.