João Pereira Coutinho. "O populismo é uma espécie de febre. É preciso reforçar os anticorpos contra ditaduras"
02-02-2021 - 06:34
 • José Pedro Frazão

O politólogo e cronista do jornal brasileiro "Folha de São Paulo" defende que só podem existir democracias se os democratas virem nelas virtudes que importa defender. Coutinho analisa o populismo na América, o fenómeno LePen em França e a resposta das instituições brasileiras a Bolsonaro. E diz que sem democratas "com paixão" não há democracias.

O populismo faz parte da vida das democracias, mas deve fazer pensar os atores políticos que primam pela racionalidade.

A tese é de João Pereira Coutinho, cronista e professor de Ciência Política da Universidade Católica no programa "Da Capa à Contracapa" da Renascença em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos. Em debate estiveram as democracias e as ditaduras, a propósito do mais recente ensaio publicado pela Fundação, da autoria do também politólogo António Costa Pinto.

"O populismo normalmente funciona como uma espécie de febre. Ou seja, são sintomas de que alguma coisa está errada e que existe algum sinal de disfuncionalidade na própria democracia. Cabe a atores políticos racionais tentar dar uma resposta aos problemas que os líderes populistas normalmente tendem a explorar numa linguagem mais primária e mais inflamada", afirma Pereira Coutinho, reconhecendo que existe um desencanto democrático e uma erosão da democracia.

O especialista em Ciência Política argumenta que o fenómeno populismo é um caso clássico de uma de várias tensões reconhecíveis em democracias teoricamente consolidadas. O professor da Universidade Católica dá o exemplo do populismo americano fundado a partir do século XIX para sublinhar que, apesar de tudo, esta corrente faz parte da própria vida interna da democracia e chegou até ao poder na América por exemplo com Donald Trump.

O problema das fações foi sentido logo pelos pais fundadores dos Estados Unidos, explica Pereira Coutinho. "Sabiam que existiriam, mas achavam que era possível contornar esse problema", assinala o cronista que, ao jeito do americano Mark Twain, defende que as notícias da morte da democracia são exageradas.

Tempo dos mais novos desencantados

Coutinho argumenta que os dados do jogo democrático mudaram radicalmente com a emergência das redes sociais. E chama para a discussão a geração "profundamente desencantada com a democracia" constituída pelos 'millenials', nascidos entre a década de 80 e o final do século XX, com impacto superior nos Estados Unidos face à Europa.

"Isto está ligado ao facto de esta nova geração ter sido atingida brutalmente pela crise financeira 2007/ 2008 e agora para esta crise pandémica, que obviamente vai ter consequências económicas devastadoras. Diria que uma boa forma de proteger a integridade da democracia liberal passa por levar a sério a crise económica, que vai atingir, que já estava a atingir e que vai agravar-se sobretudo quando falamos das nossas gerações", afirma o politólogo da Universidade Católica.

Convidado a avaliar o fenómeno político em torno da ascensão de Le Pen em França, Pereira Coutinho deteta " um descontentamento que é bastante mais profundo do que simplesmente responder a uma agenda tipicamente de extrema-direita". O colunista fala numa "espécie de rebelião geral" a que estes movimentos tentam dar uma resposta "obviamente extremista", o que no caso francês agrupa "nostálgicos da guerra da Argélia, fascistas, integralistas, descontentes que vão do antigo Partido Comunista até à extrema-direita francesa, incluindo descontentes com o sistema".

O caso Bolsonaro

Analisando os impactos do Governo Bolsonaro, o colunista do jornal brasileiro "Folha de São Paulo" assegura que as instituições daquele país estão a resistir bem à governação de um Presidente que conseguiu congregar o apoio conjugado de três fações: os nostálgicos da ditadura militar, os conservadores de costumes e a direita liberal, explicando que neste último caso, o ministro das finanças Paulo Guedes era visto como um "agente infiltrado no governo" para realizar projetos liberais há muito desejados pelas grandes empresas sedeadas sobretudo em São Paulo e Porto Alegre.

"As instituições brasileiras estão bem e recomendam-se. Temos uma imprensa atenta e muito vigorosa. Temos o poder judicial e o próprio Congresso tem resistido ao 'bullying institucional' do Presidente", observa João Pereira Coutinho na conversa registada no programa "Da Capa à Contracapa" na Renascença.

Reforçar os anticorpos da Democracia

O politólogo adverte que está cada vez mais em causa a associação entre democracias liberais e altos níveis de prosperidade e deixa um apelo figurado a um reforço das defesas da Democracia num contexto de ameaça crescente e de uma erosão persistente.

"Só podem existir democracias se existirem democratas. Ou seja, se as pessoas conseguirem ver na democracia liberal virtudes que importa defender. É preciso reforçar os anticorpos anti ditatoriais. E responder a perguntas fundacionais, mais filosóficas do que propriamente operacionais. Porque devo participar nos destinos da minha sociedade? Porque é que a autonomia é preferível à submissão? Porque é que a liberdade de expressão, de imprensa e de associação são importantes? Sem responder a tudo isto, sem aumentar a paixão pela democracia, é evidente que a democracia ficará sem os seus defensores", remata João Pereira Coutinho.