A tempestade perfeita
24-06-2020 - 06:11

Nos EUA, o racismo é um traço estrutural da história e da identidade cultural. E há duas realidades por trás da politização do caso Floyd.

Faz amanhã um mês que a polícia de Minneapolis ofereceu ao mundo o espetáculo bárbaro de um agente ajoelhado sobre o pescoço de um negro. O dito polícia assim esteve, 8 minutos e 46 segundos, causando a morte de George Floyd.

Depois disso já houve pelo menos outro episódio de violência policial sobre negros (Rayshard Brooks foi abatido em Atlanta, a 12 de junho), como antes tantas vezes ocorrera (recordem-se os graves tumultos por causa de Rodney King em Los Angeles em 1992).

Ao contrário do que acontece em Portugal, nos EUA o racismo não é o motor de alguns episódios soltos (a que por cá não se deve negar importância), mas um traço estrutural da história e da identidade cultural americanas.

Os EUA nasceram a partir de colónias de economia esclavagista e o seu “melting pot” tardou a enfrentar o reverso do “american dream”: o país das liberdades e das oportunidades foi o país que recusou discutir e votar a abolição da escravatura no primeiro Congresso da sua história, que consagrou o Bill of Rights em 1791.

Só sete décadas mais tarde, e ao cabo de uma sangrenta Guerra Civil entre o Sul e o Norte, Lincoln conseguiu fazer passar a emenda abolicionista. Mas o fosso entre brancos e negros ficou, e tiveram de passar mais cem anos para que os movimentos cívicos de Luther King e outros liquidassem o apartheid social, educativo e até político que ainda impendia sobre os segundos.

O racismo não é, pois, novidade na América, mesmo considerada a eleição de Obama. O que é talvez novo, ou redivivo, por estes dias é que ao segregacionismo estrutural dos EUA se somou uma conjuntura particularmente explosiva. É isso que explica como se passou da infeliz morte de George Floyd para o que já alguns chamam uma nova guerra civil na América (e no mundo).

Por trás da politização do caso Floyd estão pelo menos duas realidades. A primeira é a desigualdade económica agravada pelo “lockdown” da pandemia nos EUA, que piorou as condições de vida de milhões de famílias negras, levando os seus ativistas de serviço a uma espiral de fúria e de iconoclastia – que nem as estátuas de Colombo poupou. Já antes da Covid-19, o rendimento médio de uma família branca era mais do dobro do rendimento médio de uma família negra.

A pandemia piorou esse fosso – e a taxa de mortalidade da população negra face ao vírus é duas vezes e meia superior à dos brancos. A segunda realidade é a aproximação das eleições presidenciais de novembro.

A esquerda americana precisa de mártires como Floyd para demonizar o “racismo” de Trump e da sua oligarquia, obrigando Joe Biden a correr atrás da causa, da mesma maneira que Trump precisa (e gosta) de radicalizar a paisagem política que tem diante de si, para apelar à “sua” maioria silenciosa, que critica a violência policial, mas que não tolera a desordem das pilhagens.

Na América (aliás, um pouco por todo o lado), o tempo não está para consensos, mas para barreiras de separação, que são motes para mobilização e luta. O “trumpismo” precisa de aparecer como a defesa contra a anarquia, enquanto o “Black Lives Matter” (como o “Me Too” ou outros movimentos contestatários) quer surgir como uma contra-América de suposta recuperação moral e democrática.

Daqui até novembro, não pararão de aparecer outros Floyds, outros casos, outros pretextos para a radicalização de parte a parte. No final, talvez não sejam só as estátuas dos confederados que Nancy Pelosi quer retirar do Capitólio a única coisa destruída no coração da política americana.

Na tempestade perfeita, assim montada em 2020, é a própria possibilidade de uma democracia ordenada que poderá estar em jogo.