Pandora Papers. "Morais Sarmento e Manuel Pinho foram beneficiários do quadro legal que criaram"
08-10-2021 - 16:00
 • João Carlos Malta

Autor, há dez anos, de "Suite 605", livro resultante de uma investigação sobre a "offshore" da Madeira, o economista João Pedro Martins fala do mais recente escândalo a partir de um leak", o "Pandora Papers", classificando como "vergonha" e "hipocrisia" a atitude de ex-governantes que se tornam em "beneficiários do quadro legal que criaram".

João Pedro Martins é economista e especialista no estudo de em paraísos fiscais. Há uma década, fez uma investigação sobre a "offshore" da Madeira que deu origem ao livro "Suite 605".

Nessa obra, defende a tese de que a Madeira perdera 900 milhões de euros devido às exportações fictícias que inflacionaram artificialmente o PIB. Uma década depois, o assocido do Observatório de Economia e Getsão de Fraude olha para os "Pandora Pappers" como um revelador exemplo da "hipocrisia que existe nos nossos decisores políticos".

O que é que a investigação dos "Pandora Pappers" traz de novo sobre o recurso às "offshores"?

A investigação do consórcio internacional de jornalistas incide sobre um "leak", um conjunto de informação, na prática numa denúncia de alguém de dentro da indústria "offshore" sobre um universo de 14 sociedades gestoras.

São sociedades que apresentam produtos-chave na mão aos investidores que as procuram. Para termos uma ideia, estamos a falar de 14 sociedades, sendo que na Madeira temos mais de 20 que fazem este tipo de operações.

Isto é o corolário de um conjunto de informação que, nos últimos anos, tem surgido. Temos o "Lux Leaks", "Swiss Leaks", "Football Leaks", os "Panama Papers", os "Paradise Papers" e, agora, o "Pandora Papers".

Mas há algo de diferente na metodologia ou no que se soube?

Não, é rigorosamente igual. O que varia são as personagens envolvidas. Continuam a aparecer jogadores de futebol, músicos, empresários, pessoas ligadas ao crime organizado.

A particularidade desta investigação é que aparecem mais nomes de políticos. Essa é a grande diferenciação relativamente às outras investigações ou personalidades que têm envolvimento com a indústria "offshore".

São eles que, na prática, têm capacidade de legislar e de decidir. Revela muito da hipocrisia que existe nos nossos decisores políticos.

Espanta-o que haja tantos responsáveis políticos de topo a nível mundial?

Não, porque mais de 50% de todas as transações em termos internacionais - estou a falar de volume de negócios - são feitas entre as empresas-mãe e as subsidiárias. Há uma coisa que se chama "preços de transferência" que, normalmente, são manipulados por jurisdições "offshore".

Um bem na origem, no setor produtivo, tem um custo de dez, ao fazer uma migração − em termos de faturação − por uma jurisdição "offshore" que, normalmente, ou tem isenção de imposto ou tributação reduzida, os bens são inflacionados.

Esse foi o esquema que funcionou na Madeira durante muitos anos, com a Swatch, PepsiCo, a American British Tobacco.

A indústria "offshore" funciona através da manipulação dos preços de transferência.

Essa diferença é o ganho?

Sim, e isso tem efeitos nefastos sobre a economia. Cria uma concorrência altamente desleal, faz uma mossa brutal na receita dos estados e faz uma deslocalização da carga tributária dos mais ricos para os pequenos contribuintes.

Os mais pobres são os que vão pagar a fatura resultante dos impostos. E, depois, há um outro grande problema: grande parte das jurisdições "offshore" estão localizadas em países em desenvolvimento ou zonas ultraperiféricas, como é o caso de muitas ilhas.

O facto de se depender muito da indústria "offshore" nessas regiões faz com que tenha um feito eucalipto, ou seja, toda a atividade económica que deveria estar a desenvolver-se nesses locais, de diversificação da economia e na prática, na promoção do desenvolvimento regional, tudo isso acaba por ter um efeito de erosão e essas atividades não funcionam.

Essas economias dependem exclusivamente da indústria "offshore".

Depois, há um problema com as multinacionais, porque pagam impostos onde querem e como querem. No passado, a indústria "offshore" estava muito baseada na parte da ocultação. Na Holanda e no Luxemburgo, faziam-se acordos entre as autoridades tributárias e as próprias multinacionais sobre a taxa de imposto a pagar. Isto é algo que está vedado aos pequenos contribuintes.

Hoje em dia, pode-se dizer que as "offshore" são mais usadas para evasão fiscal do que para branqueamento de capitais?

Não, é para tudo. Temos "offshore" especializadas. A Suíça acaba por passar incólume às duas guerras mundiais, com estado neutral, mas, na prática, absorvia os capitais de alguns estados e de grandes fortunas que ficaram parqueados. Isso é uma das razões pela qual se mantém neutral nas duas grandes guerras.

O Luxemburgo funcionou sempre com fundiárias que permitiam a ocultação de fortunas pessoais.

Depois, há outras jurisdições, como a zona franca da Madeira que servia exclusivamente para as multinacionais fazerem esta batota fiscal nos preços de transferência, para aumentarem os custos e pagarem menos impostos no destino. Há muitas jurisdições especializadas.

O que está por detrás disto são os grandes escritórios de advogados, que têm escritórios em várias praças financeiras do mundo, e que têm também uma capacidade poderosa de influência perante o legislador de cada estado, e as "big four", a KPMG, a Delloite a EY e a PWC que auditam e ao mesmo tempo prestam consultoria financeira.

São os grandes criadores dos esquemas. A indústria "offshore" é como a indústria do crime organizado, evolui muito mais rápido do que as entidades reguladoras e inspetivas.

O envolvimento de tantos políticos explica porque é tão difícil legislar para pôr fim às "offshore"?

Explica porque são parte interessada no processo. Daí, estarem muitos políticos, muitos deles ligados a escritórios de advogados e também às consultoras financeiras, que, na prática, criam alçapões legais.

Nós tivemos, durante várias legislaturas consecutivas, os perdões ficais, como os RERT (Regime Excecional de Regularização Tributária), ou com o retorno dos capitais. Isto era um incentivo a quem colocava o dinheiro no exterior de forma ilícita, porque ia obter rendimento sobretudo ao nível de juros relativamente aos valores que eram praticados em território nacional. Depois, com o repatriamento de capitais, tinham uma bonificação ou uma isenção.

Isto só era possível porque o legislador está envolvido no processo e é ele próprio beneficiário da própria lei.

A lei é o patamar inferior da ética ou da moralidade. A escravatura foi legal durante muito tempo, mas teve de ser alterado.

Morais Sarmento e Manuel Pinho, que são citados nesta investigação alegam que a prática é legal e falam de transparência.

[interrompe] É uma vergonha, é uma hipocrisia.

Não é legitimo que o façam mediante o que é o quadro legal atual?

Não, porque são beneficiários do quadro legal que criaram. Nuno Morais Sarmento foi duas vezes ministro da República Portuguesa, está num dos maiores escritórios de advogados. Sabia que para ser proprietário ou detentor de uma unidade hoteleira e de um centro de mergulho era difícil ou havia restrições na altura e, por isso, recorreu a uma sociedade "offshore". Alegou que era o caminho mais rápido.

Quando estamos em serviços públicos e temos de enfrentar a burocracia, vamos meter a cunha porque é mais rápido para obtermos um benefício?

Não estamos a falar só da lei, estamos a falar de Justiça. A etimologia da palavra significa corrigir uma desigualdade independentemente do benefício ou do prejuízo que possa ter. Não podemos olhar para o que é legal quando dávamos obter uma vantagem que está vedada ao resto da comunidade.

Surpreende o número reduzido de portugueses envolvidos?

Não porque estamos a falar apenas de 14 sociedades que promovem estes esquemas "offshore" e de onde saiu essa informação. Há milhares de sociedades no mundo em dezenas de jurisdições offshore.

É aponta do iceberg...

Estamos a falar de um universo muito pequeno de sociedades que trabalham na indústria "offshore".

Há dez anos, fez um trabalho profundo de investigação sobre a "offshore" da Madeira. O que mudou na última década em relação ao que se passa naquela ilha?

Na Madeira, houve quatro regimes diferenciados de auxílios de Estado. O último regime já não tinha a parte de "offshore" financeiro, morreu e já não havia taxa zero.

O IRC tinha uma taxa de 5%, desapareceu a isenção do imposto de selo e de retenção na fonte. Continua a ser utilizada não com o volume de negócios do passado, e que lesou seriamente a Madeira, inflacionou o PIB regional e impediu que a região tivesse acesso privilegiado a fundos comunitários porque saiu do objetivo 1 das regiões ultraperiféricas da União Europeia e impossibilitou que através do orçamento de estado, através do fundo de coesão pudesse ser objeto de financiamento por esta via.

Desvirtuou a realidade?

E não é só isso. Esta situação não criou postos de trabalho significativos na Madeira. Não criou desenvolvimento regional. As nossas estatísticas estavam adulteradas. A Madeira nunca foi a região mais produtiva do país a seguir a Lisboa.

O que mudou então?

Devido a diversas investigações jornalísticas que foram feitas por uma televisão estatal na Alemanha, e imprensa especializada no Reino Unido e nos Estados Unidos que incidiram em casos concretos, alguns ligados ao crime organizado internacional.

Depois houve casos que denunciei de jogadores de futebol do Barcelona e do Real Madrid que faziam uma divisão do contrato desportivo, colocavam parte em direitos de imagem que depois triangulavam com empresas fictícias do offshore da Madeira, e quando o caso foi denunciado a própria fazenda em Espanha abriu processos a estas pessoas em concreto: como Xabi Alonso e Mascherano, e cada um deles através de um acordo com a autoridade tributária em Espanha pagou mais de um milhão de euros.

Aqui em Portugal não foi aberto nenhum processo de inquérito. Isso deve ser questionado, quer pelo Ministério Público quer pelo Governo.

O que justifica que os sucessivos governos nada façam em relação à Madeira com toda essa informação disponível?

Houve um governante, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que esteve só um ano no lugar, o doutor Sérgio Vasques [esteve no cargo durante um dos governos de José Sócrates], que fez alguma coisa. Fez uma auditoria às empresas da zona franca da Madeira, verificou-se que grande parte delas não pagava impostos e que os postos de trabalho que declaravam eram quase todos fictícios.

Havia pessoas que estavam em 150 empresas e multiplicavam o número de postos de trabalho existentes. Era a Sociedade de Desenvolvimento da Madeira que prestava informação à República, que depois prestava a informação a Bruxelas.

A própria Comissão Europeia abriu um inquérito para que recuperasse estes auxílios de estado que são considerados ilegais e incompatíveis. Depois há uma questão de inércia do estado português que tem de ser questionado ao Governo e ao ministro das Finanças e ao secretário de Estado dos Assuntos Fiscais o porquê de não cumprir as orientações de Bruxelas.

Os escândalos que envolvem figuras de relevo a nível mundial repetem-se sem que, aparentemente, haja mudanças de fundo. Isso não pode levar a que isso anestesie a sociedade e que não haja exigência de mudanças?

Eu penso que o efeito é o contrário: cria consciência política na opinião pública de que é necessário mudar a situação, que existe uma situação a nível global que promove a injustiça fiscal e a iniquidade ao nível social, distorce o que devia ser o conceito de tributação. Os impostos devem ser pagos nos locais onde o rendimento é obtido.

Em alguns casos, nestas investigações, temos ministros ou primeiros-ministros que caíram, como o caso da Islândia, e outros locais em que pessoas tiveram de deixar o cargo porque não aguentaram a pressão da opinião pública e alguns mesmo coraram de vergonha com o que tinham feito e o que tinham ocultado em sociedades offshore.

Tenho esperança de que em Portugal as pessoas que recorreram a offshore para obter benefícios a nível fiscal também corem de vergonha e que a sociedade, os contribuintes, e aqueles que são eleitores possam exigir aos programas políticos dos partidos que se apresentam com candidaturas à Assembleia da República levem não só a questão dos offshore, mas que sobretudo a transparência e a justiça fiscal apareçam na agenda política.