Um psicólogo no epicentro da Covid-19. E quando o medo é o pior dos sintomas?
14-03-2020 - 08:30
 • Inês Rocha

No hospital com mais doentes infetados com coronavírus, uma equipa de psicólogos lida com os sintomas que não se veem: o medo da perda e a ansiedade associada ao “desconhecido”. O diretor de Psicologia do São João acredita que o hospital vai conseguir dar resposta, mas apela a quem está na linha da frente: “quando se sentirem exaustos, não deixem de procurar ajuda”.

No Hospital de São João, no Porto, o hospital com mais casos confirmados de Covid-19 em Portugal, não se combate apenas o sofrimento físico.

Se para alguns doentes, o vírus pode provocar pneumonias graves e até a morte, para a maior parte, os sintomas não ultrapassam os de uma gripe. No entanto, no foro psicológico, esta é mais do que uma “mera gripe” – principalmente porque lhe está associada uma “dimensão do desconhecido”, como explica à Renascença Eduardo Carqueja, diretor do serviço de Psicologia do Centro Hospitalar de S. João.

“O desconhecido, por natureza, provoca-nos ansiedade”, diz o psicólogo. “No caso da Covid-19, não sabemos como será o desenvolvimento, quanto tempo será necessário para a recuperação, quais as sequelas. Tudo isto deixa dúvidas nas pessoas que estão a vivenciar esta situação”, conta.

O psicólogo dá o exemplo de um jovem, infetado com coronavírus, que acompanhou numa consulta, esta semana. “O grande sofrimento dele estava relacionado com o facto de o avô e a avó também estarem infetados. Não conseguia vê-los, e apesar de saber que estavam estáveis, sabia que a idade avançada é um fator de risco e tinha medo de os perder, uma vez que foram os avós que o criaram”, conta Eduardo Carqueja.

“O jovem dizia ‘o meu sofrimento é nulo, mas é imenso pelo medo que tenho em relação aos meus avós’”, explica. Por outro lado, apesar de estarem os dois internados, a avó não sabia que o marido estaria internado noutro hospital – algo que também causava ansiedade ao neto, que preferia poupar a avó a essa preocupação.

A consulta que Eduardo teve com este jovem foi feita ao telefone. Como todas as que faz com pacientes de Covid-19. As razões: precaução para evitar mais contágios mas também poupança de material, necessário para médicos enfermeiros e assistentes operacionais.

“Estando numa pandemia, temos de ter muita seriedade na utilização dos recursos”, lembra o psicólogo.

Nesta primeira fase, o hospital mobilizou uma equipa de nove psicólogos, dos 18 que trabalham diariamente nesta unidade hospitalar. Um número que deverá aumentar nas próximas semanas, quando começarem a chegar mais pacientes.

Os psicólogos procuram fazer uma avaliação do doente, sobre o “sofrimento mais amplo”, e no decorrer da entrevista vão percebendo se há necessidade de um acompanhamento mais específico. Por vezes, em quadros mais depressivos, pode haver um acompanhamento psicológico mais duradouro, durante o internamento e mesmo após a recuperação, ao nível do stress pós-traumático.

Durante o internamento, os doentes têm acesso a televisão e internet, o que, apesar de ter lados positivos, pode também agravar-lhes o estado de ansiedade.

“É importante que a comunicação social não seja mais alarmista do que a realidade é”, lembra o psicólogo. Eduardo Carqueja procura usar os meios a favor dos doentes e partilhar com eles, via Whatsapp, “vídeos da Ordem dos Psicólogos” para os ajudar a lidar com o isolamento.

Por vezes, o facto de toda a família estar internada na mesma enfermaria torna as coisas “mais fáceis” para os doentes, em termos psicológicos.

A quem está na linha da frente: “se se sentirem exaustos, não deixem de procurar ajuda”

Quando olha para a linha da frente do combate ao coronavírus, Eduardo Carqueja vê médicos, enfermeiros e auxiliares “inexcedíveis”, a tentar responder ao número crescente de casos “a toda a intensidade”.

“São magníficos, passam turnos inteiros, dias inteiros dedicados, às vezes esquecem-se de almoçar ou comem apenas uma sandes em movimento”.

Para já, a equipa de Psicologia do hospital não está a acompanhar nenhum profissional de saúde, até porque “as situações de profissionais infetados são recentes”.

No que toca a lidar com o stress, Eduardo Carqueja vê os colegas reagirem com “calma”, dentro do possível. Mas é uma “calma dinâmica”.

“É importante que exista calma mas não passividade, que exista dinamismo. O que vemos é que são inexcedíveis na dedicação”, afirma.

Mas Eduardo Carqueja apela aos colegas: “se se sentirem mais exaustos, a nível psicológico, não deixem de procurar ajuda. Não é sinal de fraqueza, é sinal de que somos pessoas e temos as nossas fragilidades”.

Já entre os funcionários do hospital, o diretor de Psicologia do São João diz ter assistido a alguma “reatividade”, com uma “ansiedade mais elevada com o medo de serem afetados”. “Perante o perigo, reagem desta forma”, explica.

Uma “nova abordagem” também para os psicólogos

E entre os psicólogos, como se lida com o novo coronavírus? Eduardo Carqueja admite que é um “desafio” para todos.

“É novo o modo de abordagem. A intervenção em crise tem algumas estratégias que já são conhecidas, mas neste momento temos a especificidade de ser tudo feito por telefone”, conta à Renascença.

“Por outro lado, estamos perante algo que não vemos - é um vírus, não é visível. Num incêndio, nós vemos aquilo que queimou e o que fica – aqui não vemos, onde anda o vírus? Só o identificamos de forma imagiológica, não física”.

O diretor de serviço de Psicologia lembra também que a inconstância está sempre presente no dia-a-dia, mesmo naquilo que é programado. E a dinâmica, em tempos de coronavírus, é diferente do normal.

A equipa opta por reunir em pequenos grupos. “Sabemos que um de nós pode ficar doente e, se reunirmos todos juntos, se houver alguém que esteja infectado a equipa deixa de existir”, explica.

“Damos o nosso melhor”, resume.

“Vamos dar resposta, não há como não dar”

Apesar de todas as dificuldades, o responsável do serviço de Psicologia mostra-se otimista quanto às próximas semanas e considera que o hospital vai conseguir dar resposta às necessidades.

“Sou muito feliz porque trabalho num hospital fantástico, que é exemplo para todo o país”, afirma, orgulhoso. “Eu creio que vamos conseguir dar resposta, não há como não dar”.

Ainda assim, admite não saber como vão ser os próximos dias. “Sabemos que o Serviço Nacional de Saúde tem recursos limitados, como em qualquer país do mundo”, ressalva.

Carqueja diz que, mais do que um otimismo cego, mantém-se realista.

“Ao mesmo tempo que estamos preocupados, para nos mobilizarmos, é importante percebermos a realidade em cada momento”, explica. “Não faz sentido já estarmos a viver uma realidade que ainda não aconteceu, prejudicando o que está a acontecer agora”.

“Temos de ser cuidadosos, ponderados e dinâmicos. Se um líder entre em pânico, como é que vão ser os seus subordinados?”, questiona.