O fim das crianças super-protegidas
24-04-2020 - 06:20

A brutalidade da covid-19 também acabará com esta deseducação moral das crianças. Amá-las não é fingir que o mundo é uma utopia sem dor, medo ou morte. Amá-las é prepará-las para a dureza da vidinha

Nós levámos pela mão a nossa filha mais velha a um velório quando ela tinha quatro anos. Calculo que boa parte das pessoas fica chocada com esta imagem: uma criança a entrar no ambiente soturno da capela mortuária. Fica ou ficava? Se calhar, faz sentido usar o passado, porque um dos efeitos morais da pandemia é o fim da super-protecção das crianças, uma moda iniciada nos anos 90 e que perdurou até hoje, até este momento.

Essa super-proteção, que critiquei nesta coluna dezenas de vezes, era uma marca de um ocidente rico e que se julgava uma ilha mágica a flutuar acima dos conflitos da história humana e acima dos ataques da história natural. A covid-19 estilhaçou essa levitação ahistórica: os ocidentais têm agora os pés enterrados no lodo da história natural, uma peste. A superproteção das crianças, um luxo da levitação ahistórica, não sobreviverá a esta nova dureza histórica. A geração covid será intrinsecamente mais dura ou madura.

"É preciso educar para a dureza da vida". Esta frase, que me educou e que tento aplicar às minha filhas, cria urticária à pedagogia do Neverland. A super-proteção faz com que todas as crianças sejam tratadas como “crianças especiais”. É como se todas as crianças tivessem alguma condição especial do foro neurológico. Ora, felizmente, a esmagadora maioria das crianças é neurotípica, não tem de ser tratada como se fosse portadora de uma condição debilitante. É só uma criança. Mas, ao ser educada com o escudo permanente da superproteção, a criança transforma-se num jovem que não sabe lidar com a dor, frustração e medo. Como têm salientado autores americanos como David Brooks ou Jonathan Haidt, os efeitos desta educação estão à vista de todos: os números de depressão e ansiedade nos adolescentes e jovens adultos são altíssimos, tal como os números do suicídio, mesmo em raparigas.

Ao retirar o ocidente da sua bolha a histórica, a brutalidade da covid-19 também acabará com esta deseducação moral das crianças. Amá-las não é fingir que o mundo é uma utopia sem dor, medo ou morte. Amá-las é prepará-las para a dureza da vidinha. Ir a velório não é ofensivo para a infância. É uma vacina moral necessária para o jovem adulto.