As cidades reconstroem-se, a inocência não
30-07-2018 - 17:10
 • Filipe d'Avillez

O padre Fouad trabalha sobretudo com crianças vítimas da guerra na Síria. O futuro do país depende de toda uma geração que nunca conheceu a paz, defende em entrevista à Renascença.

O padre Fouad Nakhla sentiu a sua vocação quando foi estudar para a universidade em Alepo e entrou em contacto com a verdadeira pobreza. Viveu um ano sob as ordens do padre Frans van der Lugt, um jesuíta holandês em Homs antes de se decidir a ingressar na Companhia de Jesus. Foi estudar para França e, quando voltou, a Síria que tinha deixado estava em ruínas. O seu mentor foi assassinado em 2014.

Agora, num país completamente destruído, o padre Fouad procura trazer esperança e algum futuro para crianças cujo passado nunca foi de paz.

Voltou de Paris para a Síria em 2012. Nessa altura já tinha começado a guerra. Foi logo trabalhar com refugiados e deslocados em Damasco?

Sim, porque era lá que mais precisavam de mim. Entrei logo para este projeto, em Damasco, e fui responsável por ele durante dois anos.

Qual o trabalho que os jesuítas fazem atualmente em Damasco? Trabalham sobretudo com sírios deslocados de outras partes do país e que foram para a capital?

Exato. É muito desafiante trabalhar com deslocados internos nas cidades, é um trabalho muito diferente do que se faz com campos de refugiados. E foi muito difícil para nós, enquanto sírios, fazer este trabalho, porque fomos todos afetados.

Em 2008 já tínhamos dado início ao projeto do Serviço Jesuíta aos Refugiados, em Alepo, para ajudar refugiados que chegavam do Iraque. Este centro foi entretanto destruído, mas tínhamos já a estrutura e a experiência. Mas foi muito difícil encarar este sofrimento entre a nossa própria população, ver as nossas cidades destruídas.

O trabalho com os deslocados começou em Damasco. Os primeiros a chegar vinham dos arredores de Homs, viviam nas ruas, não havia sítio para irem. Começámos por distribuir comida e água, depois foi crescendo. Passámos a distribuir comida e bens de primeira necessidade, apoio na área da saúde, e depois começámos a trabalhar mais especificamente com mulheres e crianças, com alguns ateliês.

Atualmente temos um projeto de apoio psico-social para crianças. Trabalhamos com muitas crianças que não frequentam a escola. Agora, algumas regressaram às aulas, mas estiveram fora dois ou três anos, por isso não têm capacidade de seguir a matéria. O que fazemos é ajudar neste campo, para poderem acompanhar os estudos.

E trabalham com pessoas de diferentes comunidades?

Sim, é assim desde o início. Não perguntamos a ninguém de onde vem, nem de que religião é. Vemos o sofrimento e ajudamos.

Com a guerra no oitavo ano, há agora uma geração inteira de crianças que nunca conheceram a paz. O que é que isto significa para o futuro da Síria?

Esse é o maior problema que temos. As cidades destruídas? Essas podem ser reconstruídas. Mas para as crianças que não conhecem mais do que a violência e a guerra, é mais difícil.

Há dois grupos diferentes. As crianças que cresceram dentro do país, nas cidades, sofreram muito, foram deslocadas, têm muitos traumas. A maioria não tem educação, estiveram fora da escola durante anos. Muitos trabalham, trabalhos de risco. Cresceram depressa de mais, às vezes com apenas 10 ou 11 anos já são responsáveis por toda a família e é com isso que têm de lidar.

Depois, há as crianças que cresceram nos campos, é também uma situação muito dura. Perderam o contacto com o país e com as cidades, nem conhecem as cidades de antes da guerra. Por isso falta-lhes esse aspeto da socialização.

É uma situação muito difícil, mas o futuro da Síria depende destas crianças. O que estamos a fazer é tentar construir o futuro deste país através delas.

E o Governo deixa-vos trabalhar, ou interfere?

Tudo o que fazemos é ajudar as pessoas, não tomamos posição. Por isso podemos continuar a trabalhar.

Há cristãos fora das zonas controladas pelo Governo, nas áreas dominadas pelas Forças Democráticas da Síria (FDS), lideradas pelos curdos. Alguns deles falam de uma Síria federal, em que as diferentes comunidades dividem o poder. Esta solução é possível? E agora que a maioria dos rebeldes anti-regime foram derrotados, devemos esperar um conflito entre as forças de Damasco e as FDS?

É muito difícil especular como será o futuro, porque existe muita incompreensão e as coisas vão e vêm… Os amigos de um dia, no dia seguinte são inimigos.

Mas parece-me que se queremos construir um futuro para a Síria, não o podemos fazer num modelo federal. Pode haver um futuro se mantivermos a unidade do povo e do país. Como? É possível? Não sei. Mas é neste sentido que estamos a trabalhar.

O Estado Islâmico já foi praticamente eliminado, e mesmo os outros grupos rebeldes, com ligações à al-Qaeda, estão claramente na mó de baixo. Como é que vê o futuro da Síria agora? Com mais esperança?

A al-Qaeda e o Estado Islâmico não são apenas grupos, são ideologias. Podem ser derrotados, por enquanto, mas se não combatermos o fenómeno na raiz não serve de nada.

Teme, por isso, que a ideologia se mantenha viva entre a população, é isso?

Sim. E pode ser facilmente reavivada. Por isso é que é tão difícil.

Creio na paz na Síria, mas só será possível se trabalharmos pela reconciliação. Nós vivíamos juntos, e podemos voltar a viver.

Durante esta crise percebemos que o que une as pessoas não são os discursos, é o sofrimento, a dor. Quando as pessoas se conhecem e percebem que o outro sofre tanto, ou mais, que nós, isso faz toda a diferença. Passo a ver o outro como Ser Humano e não como inimigo.

Viveu um ano com o padre Frans van der Lugt, em Homs, que foi assassinado em 2014. Há também o padre Paolo Dall’Oglio, jesuíta de origem italiana, que desapareceu e presume-se que tenha sido assassinado. O que é que estes nomes lhe dizem, enquanto jesuíta sírio?

O padre Frans é um modelo para todos nós. O seu exemplo, de decidir permanecer com as pessoas que mais sofriam, até ao fim, e partilhar as suas vidas até à morte foi para nós um grande testemunho. A sua vida, e a sua morte, dão-nos força e muita esperança para continuar e para acreditar que mesmo entre o sofrimento e na mais obscura das situações, a vida é mais forte e Deus está presente.

O padre Paolo Dall’Oglio também era uma voz muito importante. A primeira missão do mosteiro que ele liderava, Mar Moussa, era a promoção da paz e do diálogo entre comunidades e religiões, e esse trabalho mantem-se até hoje.

Estes exemplos têm dado fruto nas relações entre comunidades?

Sem dúvida. Conhecemos muitas pessoas que nos falam do Pe. Frans, do seu exemplo e do seu caminho. Alguns conheciam-no, outros só tinham ouvido falar. Para nós é como se ele ainda estivesse vivo, porque nos falam tanto dele. Sentimos que está ainda connosco, porque a sua vida ainda inspira a nossa.