Bairro da Jamaica. Um mês depois, há problemas com o realojamento “histórico”
18-01-2019 - 13:25
 • João Carlos Malta

Foram 64 famílias transferidas de um lugar para outro. Dispersar para não formar novos guetos foi o príncipio que a autarquia do Seixal quis implementar, num caso raro de política de realojamento no país. Mas um mês depois os problemas começaram. A associação de moradores diz que metade das famílias estão descontentes. Câmara fala em número exagerado. Um percalço num caso de sucesso?

Há um mês no Seixal ocorreu um momento histórico. O bairro da Jamaica, ilegal desde a nascença, há mais de 25 anos, começava a desaparecer com a torre 10 (em risco de ruir) a ser demolida.

Logo ali 64 famílias foram realojadas. Uma semana depois, o primeiro-ministro, António Costa, elogiou a metodologia adotada pela Câmara do Seixal de dispersar as pessoas pelo concelho. “É a melhor forma de evitar que se criem de guetos.” Mas, um mês depois, os problemas começaram.

Segundo a líder da associação de moradores do bairro da Jamaica, Dirce Noronha, metade das famílias que têm uma nova casa não está satisfeita ou com as casas que lhes foram atribuídas ou com o estado em que as mesmas se encontravam na altura em que foram entregues.

“Umas não tiveram obras, outras têm os vidros partidos e problemas nas casas de banho", descreve à Renascença. "Muitas estão com os canos entupidos. Os móveis da cozinha estão todos velhos. Tem sido complicado, são muitos casos.”

Dirce é uma das pessoas que melhor conhece todo o processo, até porque medeia há anos as relações entre a autarquia local e os moradores, e está neste momento numa situação que a deixa "desconfortável".

Pessoalmente, Dirce está muito feliz com o T2 que lhe atribuíram e que se prepara para lhe mudar a vida, mas muito triste com o que vê e ouve à sua volta. “Queria que as pessoas estivessem contentes como eu....”, lamenta.

"Para chegar à janela só com um ferro bem comprido"

Quem não está nada satisfeita é Clarina Utília, de 66 anos. Há mais de 20 no Jamaica, pensou que o realojamento seria um passo para um futuro melhor. Até agora não foi. Diz que chora a cada dia que passa, e enquanto mostra a casa que lhe calhou em sorte, as lágrimas assomam-lhe ao rosto por várias vezes.

A ela, e à mãe de 87 anos, estava destinado um apartamento numa cave, em que as janelas transpiram de humidade, em que os tetos já amareleceram com a água acumulada. Nos quartos há duas janelas a que apenas chega com uma vareta.

“Esta janela não posso abri-la, é o meu maior desgosto. Para lá chegar tem de ser com um ferro bem comprido. Não abre muito, não sei como é que vamos respirar nesta casa. Cheira a humidade”, queixa-se.

Clarina faz parte das 64 famílias, num total de 187 pessoas, que em dezembro do ano passado conheceram novas casas, num investimento público de pouco mais de 3,6 milhões de euros.

O bloco 10, onde habitava, era o prédio em piores condições do Vale de Chícharo, conhecido como bairro da Jamaica. O processo que, no total, vale 15 milhões de euros e que terminará em 2022 com 234 famílias realojadas, é uma parceria entre o Estado, a autarquia do Seixal e a Santa Casa da Misericórdia.

Clarina vagueia pela casa e atira: “Está tudo cheio de ferrugem. Deixei um poliban novinho no Jamaica. Aqui a cozinha e a sala são a mesma coisa. Eu aqui não fico”, diz. Depois repete e repete a mesma frase vezes sem conta.

Tudo empacotado

Desde que está na nova casa que Clarina pouco tem vivido na nova habitação. Ainda não desempacotou a maior parte dos pertences que trouxe da anterior vida. À noite tem ficado, à vez, em casa de uma amiga ou da irmã.

“Isto é um buraco sem saída e não é uma casa que um ser humano mereça. A minha saúde não permite, nem à minha mãe. Não dá, não. Para dormir aqui tem de se estar com quatro ou cinco roupas no corpo”, diz, falando também da ausência de movimento e de pessoas que contrasta com a anterior casa.

A mãe ainda não está com ela, viaja neste momento por São Tomé e Príncipe, a terra natal das duas.

A aversão à sorte que teve compara-a com a de outros que “estão em T2 muito bons”, “num rés-do chão”, com “boas cozinhas e salas confortáveis". A situação em que vive já ganhou também uma dimensão psicológica.

“Eu tenho medo, tenho pavor à cave, entro em pânico, Não durmo. Tenho a sensação de que está tudo a desabar na minha cabeça. Sinto-me mal. Estou numa situação em que não paro em casa, só ando na rua. Estou cansada, isto está a fazer-me mal”, desabafa.

Compra o passe e isso resolve-se

A alguns quilómetros de distância, Yara dos Santos vive na angústia de lhe estar a acontecer algo que ela tentou evitar.

Vive com o filho Yuri de 10 anos. No bairro da Jamaica, o pequeno podia ir a pé para a escola e para o futebol. Antes do realojamento, afirma que disse à técnica da Câmara para terem atenção à situação dela, pediu que a casa que lhes fosse atribuída não fosse longe da escola da Cruz de Pau. Disseram-lhe que podia estar tranquila.

Não foi assim. Ficou a quase quatro quilómetros de distância, na Arrentela. Ela trabalha como cozinheira no centro de dia da Amora, e trabalha às vezes ao fim de semana. Para o menino entrar às 8h20 na escola e ela chegar ao emprego, às 6h00 está a sair de casa.

“Ele fica no frio até que abram o portão. É uma hora”, explica.

Para Yuri acabou também o futebol à noite. “Muitas vezes chegava depois das 23h00. Aqui não tem transporte. Não vai. O treinador já ligou, mas não há solução. O Yuri não está nada contente.”

Yara diz que depois de ter exposto a questão a uma técnica da Câmara, ela lhe respondeu “para comprar o passe”. Olha para o lado, para os outros que receberam casa, e atira: “Há pessoas que não têm filhos, mas que estão ao pé da escola dele. Podia ser ao contrário.”

No novo bairro, não tem ninguém conhecido com quem deixar o rapaz. Anteriormente, com as vizinhas de anos era normal ficar a tomar conta dos filhos delas, ou pedir-lhes que o seu passasse tempo nas casas delas.

99,9% ou 50%

A jovem de 33 anos, natural de São Tomé e Príncipe, afirma que este não é o único problema. Quando chegou à nova casa, os armários da cozinha estavam todos rebentados e as gavetas não abriam com facilidade. A casa de banho tem inundações constantes e nem o desentupidor de canos está a melhorar a situação.

Yara queixa-se da falta de acompanhamento da Câmara. Quando a casa lhe foi mostrada, no dia em que para lá se mudou, a técnica da autarquia, segundo conta, “nem parou”. E quando lhe falou dos armários, ela respondeu: "Isso pinta-se e já está bom".

Argumenta que tem tentado contactar várias vezes a autarquia, que já lá foi pessoalmente. Diz que lhe dizem que tem de marcar “um agendamento”. Até agora nada. Clarina relata o mesmo. Tenta falar com os serviços da câmara, mas não consegue.

Questionada pela Renascença sobre o balanço do primeiro mês, a vereadora do urbanismo da Câmara do Seixal, Manuela Calado, afirma perentoriamente que “é extremamente positivo”.

“Grosso modo 99,9% [das famílias] estão muito satisfeitas. Até porque não há nenhum constrangimento que seja reportado pelas pessoas. Poderá haver alguns percalços, mas isso também acontece nas nossas casas”, começa por dizer.

A autarca acrescenta que “claro que há algumas questões que, neste momento, estamos a aferir, como as obras que foram feitas em cada uma das habitações”. E sublinha que não houve um apressar as obras, mas uma “urgência”.

Quando confrontada com os números da Associação de Moradores, que fala de 50% de descontentamento entre as famílias realojadas, garante que não é essa a informação que tem.

“Chegaram alguns casos ao meu gabinete, não vou dizer que não. E são esses os casos que estamos a corrigir. Agora metade? Isso quer dizer que mais de 30 famílias não estão satisfeitas. Isso é um pouco exagerado. Tenho conhecimento de alguns casos, e estamos a corrigir. Se há outros, não houve feedback…”, afiança.

Sobre os casos das famílias que ainda nem sequer começaram a ocupar as casas, Manuela Calado confessa que não as conhece. Mas ainda assim dispara: “Provavelmente o sítio de onde vieram, e não quero estar a fazer juízos de valor, mas as habitações por mais ou menos inconformidades que possam ter, têm melhores condições do que as que habitavam”.

“Se as pessoas não estão satisfeitas, têm de encontrar uma solução, e penso que vamos chegar a uma solução em conjunto”, acrescenta.

Essas soluções só vão acontecer, garante, quando tiver toda a informação no gabinete. “Temos de, em conjunto - as pessoas, a Câmara e a Santa Casa - ver caso a caso e perceber o que se pode fazer.”

Felicidade de uma vida nova

Já em relação à falta de comunicação entre os moradores e a autarquia, a vereadora defende-se. “Não tenho esse conhecimento. Nós sempre estivemos abertos e a nossa relação com a comunidade de Vale de Chícharos. Se têm vindo a câmara, tem feito os agendamentos, e não tem sido possível contatar, tenho de ver o que se passa”, anuncia.

No entanto, há também muitas famílias satisfeitas, como acontece com a mãe de Dirce, Vitória. Aos 68 anos, tem um T2 novinho em folha e está muito feliz.

“Estou muito satisfeita com a casa. Lá não tinha condições como tenho aqui. Aqui há melhores condições do que lá”, explica. “No Jamaica debaixo do prédio havia muita água e era muito frio. Havia muita humidade que subia para as casas.”

No entanto, nem toda a gente se está a dar bem com a nova vida. Dirce revela que são muitos que lhe revelam o descontentamento.

“Há muita gente que prefere ir para o bairro da Jamaica do que ficar onde está”, acrescenta.

Ir sem ver

Dirce critica o facto de, neste processo, nem as pessoas nem a associação terem visto as casas antes da mudança. “As pessoas só as viram no dia em que para lá foram. A associação pediu para ver e não permitiram”, garante.

A vereadora da autarquia seixalense diz que há riscos em dar demasiada ênfase a estes casos. Argumenta que ao fazê-lo se perde a ideia de que este é um processo único e de sucesso.

Sobre o motivo que levou a que os moradores não visitassem as casas antes de as habitarem, a vereadora explica que ir ao mercado em apenas um ano e comprar 64 casas, com as condicionantes que a lei coloca, não é um processo fácil.

Defende depois que mostrar as casas às pessoas de antemão levá-las-ia a rejeitá-las, porque “não gostavam do armário “A” ou "porque não gostavam da cor do azulejo”.

Dirce Noronha, líder da associação de moradores, culpa os empreiteiros contratados para fazer as obras, e põe alguma água na fervura. Baliza a discussão ao afirmar que o processo de realojamento é bom, mas que há coisas que não estão a correr bem.

“O que temos agora é melhor do que qualquer casa no Jamaica, sem dúvida que é. O ambiente e a vida são outros. Respira-se outro ar”, diz. “Mas há pessoas que não estão felizes, e algumas com razão.”