Depois do veto de Marcelo Rebelo de Sousa, e no meio de críticas da direita à esquerda e dos representantes de proprietários aos movimentos sociais o Partido Socialista (PS) vai confirmar, esta quinta-feira, a votação do pacote Mais Habitação no Parlamento.
Em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal Público, Rita Silva, ativista do Movimento Vida Justa, diz que se trata de "uma oportunidade perdida" para melhorar a resposta a uma crise habitacional que tem levado cada vez mais famílias a viver em sobrelotação, em barracas ou em tendas, como denunciam as associações pelo direito à habitação no terreno.
A investigadora, que também fez parte da associação Habita!, relata isso mesmo: "a habitação tornou-se um grande vetor de desigualdade neste país", criticando a falta de "coragem política" para regular o mercado.
O PS prepara-se para confirmar o programa Mais Habitação no Parlamento, depois de o Presidente da República (PR) ter vetado este pacote. É uma oportunidade perdida para alterar uma proposta que tem sido tão criticada?
Sem dúvida que é uma oportunidade perdida para o Governo e para a Assembleia da República melhorarem a política de habitação.
O Mais Habitação está muito longe de ser suficiente para fazer face à enorme crise de habitação que se aprofunda e que se alastra, porque baseia-se, sobretudo, em incentivos fiscais, que, só por si, não conseguem resolver a crise.
O Mais Habitação não vai resolver o problema da habitação, que é gigante.
O PR já avisou que há uma segunda parte da história, a regulamentação do diploma. Isso é uma janela para que Marcelo Rebelo de Sousa possa deitar por terra este pacote legislativo?
As preocupações de Marcelo não são propriamente as nossas, ou seja, das pessoas que estão na luta da habitação todos os dias. O PR não está isento de uma abordagem ideológica sobre o pacote.
Por exemplo, promulgou a liberalização dos licenciamentos e da construção, uma medida que criticamos muito.
Por outro lado, o que ele veio dizer com o veto é que o Mais Habitação não dá suficiente confiança ao investimento e ao sector imobiliário.
A política de habitação não deve ser feita a pensar na confiança do sector imobiliário. Aliás, o sector imobiliário está extremamente confiante, porque tem feito enormes lucros e está a especular como nunca.
E preocupa-nos que o PR esteja a ameaçar vetar, por motivos políticos e ideológicos, partes do Mais Habitação que até poderiam ser as únicas a ter algum interesse.
Quais?
Há algumas migalhas que são ainda muito insuficientes, mas que vão no sentido certo.
Por exemplo, o travão ao aumento das novas rendas para os contratos dos últimos cinco anos abre um precedente relativamente ao tabu de não podermos controlar as rendas. É possível controlar as rendas. É claro que esta medida mantém as rendas num preço muitíssimo elevado.
O que defendemos é uma regulação e um controlo de rendas que possa baixá-las, que não é o caso.
Por outro lado, impor uma taxa adicional ao alojamento local é uma medida importante, mas o que gostaríamos de ver era a redução do número de apartamentos turísticos, que não estão a servir a sua função social, que é a função da habitação.
Há uma outra medida, que é fruto da luta mas que ainda não sabemos se vai efetivamente funcionar, que é o fim dos vistos gold.
O Mais Habitação vai contribuir, de alguma forma, para dar resposta à crise habitacional?
Quanto a nós, não. O Mais Habitação não vai resolver o problema da habitação, que é gigante.
Há famílias que se veem obrigadas a ocupar, que estão a ir para tendas, que têm de construir barracas.
Têm recebido mais pedidos de ajuda para situações urgentes?
As pessoas que nos procuram são em maior número e estão em situações dramáticas.
Isso não é de agora, as rendas e o preço da habitação têm vindo a subir desde 2015, mas há um aumento destas situações, porque o problema alastrou-se às chamadas classes médias e a gravidade da situação aprofundou-se.
Famílias que dantes pagavam já mais do que 40% do seu rendimento para encarar as despesas de habitação, hoje podem estar a pagar 80% ou 90%.
Muitas das famílias monoparentais encabeçadas por mães com crianças, com um salário mínimo ou um salário médio, não conseguem encontrar nenhuma casa. Há famílias que se veem obrigadas a ocupar, que estão a ir para tendas, que têm de construir barracas.
Está a acontecer com frequência as pessoas terem de ir para tendas?
As pessoas não têm alternativa. Isso acontece muito. Temos conhecimento, através do trabalho que tive na Habita! e que tenho na Vida Justa, do aumento de barracas.
E, como hoje em dia é muito difícil construir barracas porque as câmaras não deixam, as pessoas estão a construir barracas em zonas escondidas, muitas vezes em áreas de risco, por exemplo, em áreas inclinadas e escondidas, em situações cada vez mais perigosas.
E vemos também a sobrelotação. Temos conhecimento de um grande número de famílias a partilhar casa, uma família por quarto, às vezes famílias com crianças. Já há um milhão de pessoas a viver em sobrelotação em Portugal.
Já está no terreno como activista há vários anos. Como é que a atual crise se compara com anteriores?
Comecei em 2005. Nessa altura, lutávamos contra as demolições de bairros autoconstruídos, cujas câmaras estavam a demolir.
Estávamos a falar, sobretudo, de população migrante, negra e cigana, o que mostra que a crise da habitação, para a população racializada, sempre existiu e não se alterou, mas, neste momento, essa população vê-se com ainda mais dificuldades.
Depois, com a crise financeira global, veio austeridade, a liberalização do mercado de arrendamento e uma série de leis, como os vistos gold, os residentes não habituais, os incentivos ao investimento imobiliário.
A partir daqui, entramos num novo modelo de desenvolvimento deste país, insustentável, que baseou o crescimento económico no imobiliário e no turismo.
Este modelo está a fazer com que todo o mercado de habitação, seja de compra, seja de arrendamento,se vire para o poder de compra externo. A habitação tornou-se um grande vector de desigualdade neste país.
Esta quinta-feira, são aprovadas mais medidas, nomeadamente uma redução e estabilização por dois anos da prestação do crédito à habitação. Isto ajuda ou já vem tarde?
Desde 2017 que o Governo tem vindo a anunciar medidas aqui e ali.
É a Nova Geração de Políticas de Habitação, é a Lei de Bases da Habitação, é o Programa Nacional de Habitação, agora é o pacote Mais Habitação, agora mais esta medida, mais aquela medida. Há muitas medidas, é até difícil acompanhá-las.
Mas estas múltiplas medidas acabam por não resultar, porque há uma recusa da parte do Governo em fazer coisas fundamentais. Não há coragem política para resolver o problema gigante que temos neste país.
Regular e controlar preços é possível. O Governo, como não tem coragem de regular o mercado, está sempre a mandar medidas para cima da mesa, só que essas medidas acabam por não ter grande efeito.
Não conhecemos os moldes da medida que será aprovada. Se ela for no sentido de regular as prestações bancárias ao nível daquilo que as pessoas podem pagar, é bem-vinda.
Outra das medidas que também será anunciada em breve é um novo travão ao aumento das rendas. Como deveria ser desenhada essa solução?
Um travão à atualização das rendas é bem-vindo, mas isto acaba por ser devolvido aos proprietários através do IRS.
A regulação das rendas tem de ser mais sistémica e o tipo de regulação actual passa por pequenos travões, mantendo as rendas muito elevadas.
Porque é que temos esta enorme subserviência aos senhorios e aos proprietários que estão a praticar rendas extremamente elevadas, em que temos de devolver qualquer milímetro, qualquer coisa que tenham perdido?
Temos de discutir qual é o contributo dos senhorios e dos proprietários neste país. Não são todos iguais, há pessoas que têm poucas casas a arrendar e que nem sequer praticam rendas abusivas, mas temos uma grande faixa, e cada vez mais com maior peso, de grandes proprietários.
A única coisa que um proprietário faz, muitas vezes, é estar sentado numa cadeira a esperar, ao fim do mês, que cheguem as rendas.
É preciso reduzir os apartamentos turísticos, não mantê-los, como propõe o Governo
Em Setembro e Outubro, há novas manifestações pelo direito à habitação. O que espera que resulte destes protestos? Já duram há muito tempo e o Governo não os tem levado em conta.
Não. Mas vale a pena lutar. Quando convocámos o protesto de abril, convocámo-lo no início de Janeiro e, logo a seguir, o Governo veio apresentar um pacote novo de medidas.
O facto de haver protestos na rua faz com que a habitação esteja no centro da discussão política. Sabemos que esta luta não é fácil nem rápida, porque estamos a enfrentar interesses fortes neste país, do sector financeiro, do imobiliário, da construção e do turismo, mas vamos insistir nas medidas que pedimos.
É preciso regulação das rendas, das prestações do crédito e do lucro da banca. É preciso acabar não só com os vistos gold, mas com o regime de residentes não habituais e com os incentivos injustos aos nómadas digitais.
Pedimos, também, uma moratória de despejos e à oposição à renovação de contratos. É preciso reduzir os apartamentos turísticos, não mantê-los, como propõe o Governo, e precisamos de um plano de emergência para os estudantes.
Mantêm contacto com o Governo?
Apresentámos formalmente estas propostas todas ainda na altura em que o Mais Habitação estava a ser discutido na Assembleia da República, a todos os partidos políticos, menos à extrema-direita.
Houve alguns partidos que dialogaram connosco, outros que não se interessaram. O PS, a direita e o Governo não se mostraram muito interessados em dialogar connosco.
A ministra nunca a recebeu as associações pelo direito à habitação?
A ministra, quando nos recebeu, foi sempre porque tivemos de entrar no ministério e dizer que, depois de não sei quantos pedidos de reunião, não sairíamos enquanto não fossemos recebidos. São sempre reuniões quase à força.
Lamentamos, sobretudo, o facto de sabermos que a ministra e o Governo têm negociado muitíssimo com as associações de proprietários e promotores imobiliários.
Eles estiveram sentados em gabinetes a desenhar algumas das políticas do Mais Habitação, o que nos faz, desde logo, ter enormes suspeitas sobre aquilo que este pacote vai trazer de benefício para nós.
Sabemos que, por exemplo, a APPII [Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários] esteve a negociar várias medidas dentro do Mais Habitação. Infelizmente, nós nunca fomos chamados.