Não sinta culpa por jantar à frente da TV com os seus filhos
01-04-2022 - 08:28

Na mesa tradicional, a conversa num dia normal pode ser difícil ou desinteressante, porque nem sempre há algo de novo para debater. Com a TV, ao invés, há sempre qualquer coisa para debater.

Vale a pena continuar a revisitação ou reconstrução das ideias feitas sobre família e boa educação. O jantar, como dizia na semana passada, não tem de ser o evento rígido que ainda domina a mente colectiva. Não, às vezes não dá para jantarmos todos juntos depois de um dia cansativo. Ou, então, como sugere Jordan Calhoun na “The Atlantic”, podemos jantar todos juntos mas no sofá frente à televisão.

No meu caso, esta versão não é feita no sofá, mas sim na mesinha de centro da sala que é um velho baú que herdei da minha avó. Ficamos de joelhos ou sentados no chão como os orientais. É divertido, porque é uma variação e porque, como diz Jordan Calhoun, passamos o jantar a falar sobre o que vemos na TV.

Na mesa tradicional, a conversa num dia normal pode ser difícil ou desinteressante, porque nem sempre há algo de novo para debater. Com a TV, ao invés, há sempre qualquer coisa para debater: podemos conversar sobre uma notícia, um concurso, um filme, um desporto, um documentário, um desenho animado. Muitas vezes, dou-me ao trabalho de prestar atenção aos desenhos animados e descubro que há ali histórias e mensagens de interesse. Passar o jantar a discutir ficção com os vossos filhos é uma experiência que recomendo. Esse objeto de ficção até pode ser um filme infantil ou os "Green na Cidade Grande" do Canal Disney. Boa parte dos preconceitos sobre este tipo de jantar resulta da ideia de que a tv corta o diálogo entre os membros da família. Nada está mais errado. A TV, ao contrário do telemóvel, é um ecrã colectivo que vai estimulando a conversa sobre enredos, argumentos e notícias.

As famílias têm muitas formas. Uma família a sério não tem de fazer isto e aquilo para ser uma família a sério. O jantar formal à mesa é uma forma clássica de uma família clássica que já não existe. Para começar, implicava famílias completas, sem divórcios, com horários de trabalho mais dóceis e com um membro do casal (a mãe) a ficar em casa e a tratar do jantar com tempo. Ou então havia uma avó ou tia ou criada interna. Essa domesticidade já não existe ou é raríssima; é apenas um privilégio de pessoas muito ricas e as outras pessoas, a maioria, esgota-se na procura desta perfeição doméstica que não pode ter. Aqui em casa sou eu quem trata da casa no dia-a-dia, mas não é esse o meu trabalho. As coisas não são e não têm de ser perfeitas.

Comer em frente à TV carrega um estigma, porque é um momento que é comparado com essa tal perfeição do passado. Mas será que era mesmo um modelo perfeito? O jantar à mesa formal e obrigatório não era uma manifestação do poder do pater familias? O jantar só começava quando o pai chegava e era quase uma celebração da chegada dessa autoridade. Acorrer à mesa nesse momento era um acto de amor ou de obrigação? E o que dizer das famílias que se massacram com farpas ao longo do tal jantar? Não seria melhor jantarem em separado?

O que interessa é a defesa da família, os modos como fazemos essa defesa variam no tempo.