​Marcelo explicado aos partidos
02-01-2018 - 18:34

Não acreditei que fosse Marcelo, na sua constante imprevisibilidade, a conseguir mostrar-se como o verdadeiro Presidente de todos os portugueses. Mas talvez ele tenha em dose dupla o bom senso que falta cada vez mais a toda a sociedade.

Neste fim do ano, inesperadamente, não foi apenas o Presidente, mas a nossa democracia que deu entrada nas “Urgências”. Esperemos que, tal como Marcelo, saia rápido e de melhor saúde, a tempo de gozar 2018. Para isso é preciso que os que, à má fila, lhe espetaram uma faca nas costas, em plena época de festas, queiram interpretar o apelo presidencial: é preciso que saibam “reinventar a confiança” depositada neles e sem a qual a própria Democracia não resistirá muito mais tempo. Se não o fizerem, com a urgência exigida, serão rapidamente remetidos ao passado e substituídos por todo o tipo de movimentos e populismos que geralmente configuram a antecâmara dos totalitarismos.

Quem disse que meio século passado ficámos a salvo? Quem disse que nos vacinaram os 48 anos anteriores? Quem pensa que o passado não se repete, nem como tragédia, nem sob esta forma de comédia de péssima qualidade a que começámos a assistir? Afinal de contas, o que aconteceu durantes aqueles nove longos meses de conspiração multipartidária, à porta fechada, nos corredores da Assembleia, enquanto cozinhavam a nova lei de financiamento dos partidos, não foi apenas mais uma negociata como tantas outras na cada vez mais habitual promiscuidade com variadíssimos “lobbies” ou em conluios improváveis. Foi um golpe antidemocrático de que só não há provas porque não deixaram actas, e desta vez nos pouparam às escutas vergonhosas.

Bem sei que ficaram “de fora” o CDS e o PAN. Foi pouco. Pouco demais. Muito poucochinho… Sobretudo, porque tendo participado em boa parte da “conspiração” não conseguimos saber ao certo até que ponto o que os limitou de ir até ao fim foram o genuíno bom senso, a aplicação dos princípios, ou o mero calculismo conjuntural. Dê-se-lhes, apesar de tudo, o benefício da dúvida e louve-se o facto de não terem participado na consumação do ataque.

Faço parte daquele pequeno número que consideram as alterações de fundo à lei de financiamento partidário essenciais. Acho, como poucos, que os políticos devem na generalidade ganhar mais e, em múltiplos casos, muitíssimo mais. Acho que o financiamento partidário, exatamente para não ser obscuro e perigoso, deve ser feito às claras e permitir não só o financiamento individual como empresarial ou fundacional, praticamente sem limites. Isso apenas mostrará a quem interessam ou beneficiam de algumas medidas, ou alguns programas, ou quem gostariam de ver no poder certos interesses ou certos senhores. Respeito o povo que contribui com o seu suor para fazer a Festa do Avante que, além de festa, é também, como qualquer quermesse paroquial, a melhor forma de encontrar o dinheiro necessário para cumprir a missão (que, no caso do PCP é, manifestamente, o pôr em prática a divulgação do ideário marxista).

Não sendo do PCP, e sendo mesmo, de alguma forma, “um dos seus inimigos”, não me importo de pagar com os meus impostos para que, em liberdade, possam dizer o oposto do que defendo. Tenho por boa a consigna de não fazer aos outros o que tenho por certo, me fariam a mim (basta ver como calam os adversários nos sinistros regimes onde levaram a sua avante…).

Mas, nada disto, nem sequer a possível concordância com o alargamento da isenção de IVA a múltiplas entidades de interesse público (como, em minha opinião, os partidos políticos são), permitem que lhes perdoe, neste caso o calculismo, a má-fé, a hipocrisia e, sobretudo, o jogo sujo e a aposta no silêncio que se transformou num pacto de opacidade e falta de coragem perante o povo que é suposto representarem.

O que os partidos fizeram, nesta matéria em causa própria, mina a moral em nome do qual deveriam poder falar à sociedade, trai o voto que neles fizeram os cidadãos cujos únicos interesses deveriam representar. Mina a confiança, essa que em nome de todos os portugueses Marcelo percebeu que é preciso “reinventar”, não apenas no Estado, mas no próprio regime.

Não acreditei que fosse Marcelo, na sua constante imprevisibilidade e irrequietude, a conseguir agir e mostrar-se como o verdadeiro Presidente de todos os portugueses. Mas talvez ele tenha em dose dupla o bom senso que falta cada vez mais a toda a sociedade e isso lhe tenha permitido essa capacidade, amplamente demonstrada no “contraditório” do ano que findou. Se deixarmos que a confiança na Democracia entre em crise podemos ter a melhor economia do mundo, mas perderemos passo a passo a nossa mais preciosa conquista: a Liberdade.

Sampaio soube ver que “há vida para além do défice”, mas o actual Presidente conseguiu ver ainda mais longe. Viu, o óbvio, que o mito do rei “vestido” não nos deixa ver. Que não está na economia, e menos ainda na mera eliminação do défice (ou na pujança das finanças), o garante do principal requisito do nosso desenvolvimento. Esta nunca sobreviverá nem a um Estado “falhado” no exercício das suas principais funções (e entre elas está a capacidade de assegurar a nossa segurança em múltiplas dimensões), nem ao desvirtuamento do próprio sistema partidário.

Os lobos populistas que andam à solta, um pouco por todo o mundo, não nos colocam a salvo, não está garantido que não nos ataquem um dia destes. Dos Estados Unidos do senhor Trump à velha Áustria, da poderosa extrema-direita na revolucionária França ao neofascismo encapotado e emergente na desenvolvidíssima Finlândia, da nova Alemanha “negacionista” às recém-libertadas Polónia e Hungria, saudosas da sinistra influência russa do senhor Putin, o mundo não nos merece grande confiança. Daí a urgência de “reinventarmos” a confiança em nós (partidos, Estado e instituições incluídas). Esperemos reencontrá-la em 2018.