​O parto do pai
07-02-2020 - 06:33

Ser pai não é um afecto, não é uma paixão, não é um direito, não é uma fofice ou fofura, ser pai é um terramoto que nos muda o nome

Senhor, o parto é uma ruptura atroz. No meio de gritos, sangue e vísceras, saltámos de uma dimensão para a outra, de um mundo submerso para um mundo erguido, do interior para o exterior, da mãe para o mundo. A Tua dádiva da vida é dolorosa, para a mãe, para o bebé, mas essa dor já é uma metáfora do que nos espera.

Ao longo da Bíblia, muitas figuras mudam de nome, Saulo-Paulo, Hadassa-Ester, Jacob-Israel. Esta mudança de nome sublinha uma mudança na natureza da pessoa; não é uma mudança de personalidade, é um crescimento da personalidade, um salto na espessura moral da pessoa que resulta da dor ou da culpa e da consequente catarse. É um passo na Tua direcção. Quando deixa de ser Saulo e passa a ser Paulo, este homem fatal tem um parto em vida. É um parto em consciência. Tenho-me lembrado desta metamorfose bíblica por estes dias. A minha filha mais nova faz cinco anos e, caramba!, eu ainda era uma criança há cinco anos. Era Saulo e agora tento ser Paulo, tento. Ser pai a sério, estar mesmo comprometido com a tarefa gigantesca que é criar seres humanos, implica aceitar este doloroso renascimento, implica mudar com os nossos filhos e pelos nossos filhos. Se quisermos manter o nosso velho nome, vamos falhar. Não podemos servir dois donos, ou servimos o solteirão do passado que nos assombra com as proezas de outrora, ou servimos os nossos filhos através de Ti (ou servimos-Te através dos nossos filhos, não sei qual ordem).

Ser pai não é um afecto, não é uma paixão, não é um direito, não é uma fofice ou fofura, ser pai é um terramoto que nos muda o nome. É um segundo parto. Um segundo e demorado parto, um renascimento em câmara lenta. Sou pai há oito anos e, confesso, sinto que estou longe do fim. Qual é esse fim? É quando chegar àquele ponto em que sirvo as minhas filhas num total esquecimento de mim próprio. Há que tentar, pelo menos. Não sei se chego a Paulo, Senhor, mas sei que já não sou Saulo.