"Pagar a países para travar saídas de migrantes é reconhecer a incapacidade europeia"
18-09-2023 - 23:46
 • José Pedro Frazão

O especialista em migrações Gonçalo Saraiva Matias considera que as estratégias estão longe do que é necessário ou são mesmo a repetição de medidas anteriores. O também presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos discorda da politica europeia de cheques pagos a países de origem, como a Tunísia, em troca pelo controlo dos fluxos migratórios.

Depois da ida da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, a Lampedusa, onde apresentou um plano para responder à vaga migratória, a Itália alargou o prazo máximo de detenção para migrantes a repatriar. Roma vai pedir a ajuda das Nações Unidas na Assembleia Geral da ONU, esta semana, em Nova Iorque, e no final da semana o Papa vai a Marselha para um encontro sobre o Mediterrâneo, muito marcado pela questão migratória.

Neste contexto, a Renascença ouviu o especialista em migrações Gonçalo Saraiva Matias sobre os passos agora dados.

Temos observado uma estratégia, visível em entendimentos firmados nas últimas semanas, nomeadamente com a Tunísia, que passa ajudar os países de origem para tentar travar estes fluxos migratórios logo na origem. Mas há também quem critique este tipo de estratégia por dizer que isto não se resolve através de dinheiro enviado a estes países para que travem a migração. Qual é a sua ideia sobre os méritos e deméritos destas abordagens?

Eu estou entre os críticos dessa solução, que não é nova. Nasce logo em 2015, no auge da crise migratória, quando se firmou um acordo com a Turquia para que este país retivesse os migrantes no seu território para que , dessa forma, não entrassem no território da União Europeia.

A verdade é que essa estratégia teve efeitos práticos, porque, nos meses e anos que se seguiram, houve uma queda muito acentuada do número de migrantes que entraram na União Europeia. Mas isso verdadeiramente não resolveu o problema, porque as pessoas continuam a estar deslocadas e em muitos casos a serem refugiados. Não chegam ao território da União Europeia, o que, em última análise, até pode constituir uma violação do direito Internacional dos refugiados, que impõe uma obrigação aos Estados de receberem refugiados.

Por outro lado, isto poderá dar um enorme poder político e até financeiro a alguns países que estão longe de serem exemplos no cumprimento das convenções internacionais. O acordo que foi firmado com a Turquia em 2016 tem enormes fragilidades jurídicas e até políticas. Mas isso foi visto por alguns responsáveis em Bruxelas, como o exemplo a seguir. E ainda recentemente, durante o mês de junho, houve um princípio de acordo no Conselho Europeu sobre matérias de migração e uma das questões que lá está é precisamente a transferência para os estados terceiros do controlo das fronteiras.

No fundo é um reconhecimento por parte da União Europeia da incapacidade de gerir as suas fronteiras e de uma transferência para estados terceiros que não cumprem os mesmos standards de direitos humanos e que o fazem a troco de contrapartidas financeiras para que possam fazer essa gestão das nossas fronteiras externas.

Por outro lado, outro problema - e que no fundo seria a via de solução disto - é que tal não nos permite criar canais de migração legal, que foi também um dos compromissos europeus na Estratégia Europeia para as Migrações e que encontra muito pouca tradução prática. É a ideia de criar canais legais de migração permitindo às pessoas formular um pedido de asilo e aqueles que não são enquadráveis no asilo poderão encontrar formas de migrar de forma legal para os países da União Europeia.

Muitos deles estão absolutamente necessitados dessa imigração, como o caso de Portugal, que precisa desesperadamente de pessoas e que não consegue atrair pessoas em número suficiente para as necessidades do mercado de trabalho.

Por que razão esses mecanismos de migração legal não estão a ser implementados?

É sobretudo uma questão de vontade política, porque há formas conhecidas noutros países de criar mecanismos legais de migração. Na verdade, nunca foram criados. A grande resposta dada desde a crise de 2015 foi realmente a transferência para Estados terceiros dessa responsabilidade. Isso foi feito, em primeiro lugar, com a Turquia e agora está a ser replicado com outros países.

O único mecanismo que foi criado foi o chamado Cartão Azul, que, na verdade, não é aplicável a esta situação, porque é destinado a pessoas altamente qualificadas, que não é o caso da maior parte destes migrantes. Portanto, não temos hoje nenhum mecanismo adequado para criar esses canais legais de migração e para dar uma alternativa real às pessoas que estão nesta situação, que é apresentar o seu pedido de asilo ou de visto e depois os países europeus decidem o que querem fazer com esses pedidos. Esse diálogo não existe, aquilo que estamos a fazer é literalmente transferir para outros essa responsabilidade.

A Itália tem um problema entre braços e, muitas vezes, sente-se desacompanhada. Há uma certa inação europeia?

Sem dúvida, esse é um problema desde o início. Só vejo uma diferença para pior - é que no início da crise, em 2014, a Itália estava desacompanhada, mas estava a agir sozinha, salvando vidas no Mediterrâneo. Recordo que o primeiro programa de salvamento de vidas no Mediterrâneo era o programa Mare Nostrum, um programa exclusivamente italiano e, na altura, a União Europeia entendia que não era um problema comum.

A grande alteração é que, entretanto, a Itália já não está a salvar vidas no Mediterrâneo. Pelo contrário, está a tentar evitar que as pessoas cheguem às costas mediterrânicas de Itália e, portanto, a dificultar esse processo. O que, num certo sentido, é compreensível, porque se os países que estão na frente não contam com a solidariedade europeia nem com mecanismos europeus para procurarem lidar com as questões, é natural que também eles próprios acabam por afastá-las.

Para sermos justos, é verdade que nos últimos anos houve um aumento do investimento europeu no controlo externo das fronteiras, nomeadamente através da Frontex (a Agência Europeia de Controlo de Fronteiras) com maior investimento financeiro e até capacidade e competência para atuar nestas áreas. Mas, ainda assim, isso não é suficiente e os países acabam por se sentir muito abandonados e, por isso, naturalmente, também não querem tomar em mãos as obrigações que seriam comuns.

A Itália definiu novos prazos para os centros de detenção temporários, tendo em conta a situação em que se encontra. E em Lampedusa, Ursula von der Leyen foi muito clara a dizer quem não tem condições para pedir asilo não deve entrar na União Europeia.

Isso é um pouco perverso, porque as pessoas, por definição, não têm condições para pedir asilo. Quem pede asilo está numa situação de desespero, de desproteção absoluta e é por isso que bate à porta dos outros Estados. E a tradição humanista da União Europeia devia, no fundo, honrar esse dever de proteção.

No acolhimento de migrantes, logo após também a crise de 2015, houve uma tentativa de estabelecer um sistema de quotas dentro da União Europeia e de distribuição equitativa de refugiados, o que levaria a um esforço solidário entre os países europeus no acolhimento de refugiados.

Só que esse sistema nunca se conseguiu verdadeiramente implementar e a reforma do sistema de Dublin é por todos reconhecido como tendo fracassado. Nunca foi possível, em parte porque o Grupo de Visegrado reagiu negativamente e os países do Leste europeu negaram este sistema de distribuição por quotas e não houve vontade política de insistir nisso até ao fim. Aliás, este compromisso de junho passado é absolutamente fútil no que respeita à distribuição de refugiados, porque não foi possível retomar um mecanismo verdadeiramente solidário de distribuição de refugiados

Assim sendo, é natural que os países da entrada de migrantes não queiram assumir essa responsabilidade e, portanto, continuamos a não cumprir as nossas obrigações em matéria de concessão de asilo e de distribuição equitativa dos refugiados no território da União Europeia.

Isto a juntar-se ao desacordo sobre as novas regras de migrações bloqueadas pela Polónia e pela Hungria no último Conselho Europeu. Este pacote que está a ser tão difícil de acertar é de facto a melhor solução possível?

É um pacote já muito tímido e acho que está longe de ser aquilo de que a União Europeia precisa e que correspondeu às primeiras propostas que surgiram logo após a grande crise de 2015

É um pacote que já está muito descaracterizado e muito fraco em relação àquilo que seria necessário. Mas mesmo este pacote não tem garantias de ser aprovado, porque há de facto uma reação muito negativa da Polónia e da Hungria e que faz temer que não seja possível chegar a nenhum acordo significativo.

E há uma questão política porque a questão das migrações está a provocar fraturas entre os Estados-membros. Observa um aumento ou, apesar de tudo, uma estabilização das fraturas ou micro fraturas que a questão da migração vai trazendo ao quadro político?

Vejo um aumento dessas fraturas e isso assiste-se um pouco em todos os países. Curiosamente, esse aumento das fraturas não resulta de uma subida dos números, porque se olharmos para o universo de pessoas que estão a entrar nos países da União Europeia, esse número está em decréscimo e caiu muito desde 2015.

O que aconteceu foi um aumento das fraturas políticas e o surgimento de partidos que utilizaram as migrações como muleta populista para o seu crescimento entre os seus eleitorados e, portanto, nalguns casos em que isso tenha sequer uma tradução na realidade, levou a que os receios naturais dos europeus relativamente às migrações tenham sido aumentados por esse discurso político e que as fraturas se mantenham e, nalguns casos, se aprofundem. Mas olhando para os números, não tem qualquer justificação.

Há dois meses saiu um relatório do Observatório das Migrações que mostrava que Portugal, no fundo, rejeita mais refugiados do que aqueles que acolhe, olhando para o asilo em 2023. É uma surpresa para si?

É natural que alguns dos pedidos não estejam devidamente fundamentados. E é preciso ter em conta que os critérios para cumprir o pedido de asilo são relativamente apertados e vêm de convenções muito antigas. Para dar um exemplo, as pessoas que fogem de situações que têm a ver com as alterações climáticas, os chamados “refugiados climáticos”, não tinham qualquer proteção em Portugal ou noutros países.

Os países têm estado a aprovar legislação caso a caso - e Portugal está também a prepará-la - mas, de acordo com o Direito Internacional, não havia uma proteção para essas situações. Há uma série de situações que estão fora da proteção jurídica dos refugiados. E, portanto, é natural que esses pedidos acabem por ser recusados. Há por isso mesmo uma urgência em atualizar estes mecanismos e aprovar legislação interna nos Estados que proteja as pessoas nessa situação porque, obviamente, merecem proteção jurídica internacional.