PCP. “Défice democrático” da regionalização tem de ser corrigido rapidamente
03-09-2021 - 07:37
 • Eunice Lourenço

Representante de autarcas comunistas critica processo de descentralização e assume objetivo de aumentar votação nas autárquicas para ganhar mais peso para mudar o país.

O Governo diz que o processo de descentralização é o passo necessário para a regionalização. Para o PCP, o percurso devia ser o inverso. “Não há descentralização sem regionalização, por isso entendemos que a regionalização devia avançar o mais breve possível”, diz Carlos Pinto de Sá, presidente da Câmara de Évora.

Em entrevista à Renascença, o representante dos autarcas comunistas considera que a descentralização de competências, tal como tem vindo a ser feito, só acentua ainda mais as diferenças. E promete que, com regionalização, os autarcas conseguem travar o processo de despovoamento que afeta dois terços do país.

O que distingue um autarca do PCP?

Antes do mais, a ideia de que defendemos um projeto de transformação do país que tem uma componente nacional, uma componente regional e uma componente local e que é um projeto único, uma vez que queremos uma transformação real da sociedade e batemo-nos por um modelo de sociedade diferente do que temos atualmente, do ponto de vista económico e do ponto de vista da justiça social.

Defendemos a configuração do atual poder local democrático, que garante uma grande participação popular nos órgãos municipais, nas assembleias de freguesia. Combatemos tudo aquilo que leva à redução de eleitos nestes órgãos, como pretendem outras forças políticas, nomeadamente PS e PSD que por várias vezes já tentaram alterar as normas eleitorais. Houve mesmo, com o Governo PSD-CDS, um corte enorme nas freguesias, que reduziu a participação popular em mais do que uma dezena de milhar de participantes ativos, o que foi uma perda para a democracia.

Entendemos que os órgãos, incluindo a Câmara Municipal, devem ter a representação das grandes tendências políticas dos concelhos, de acordo com as percentagens eleitorais. Há propostas que querem transformar os executivos municipais em executivos de uma só cor política. Nós achamos que isso é mau e reduziria a democraticidade dos órgãos e a representatividade das populações nos órgãos autárquicos.

Gostaria ainda de referir a recusa de privilégios pessoais no exercício dos cargos. O eleito do PCP, por estar num cargo, não vai receber mais dinheiro do que aquilo que recebe no seu trabalho normal.

Outra marca distintiva é a defesa dos serviços públicos. Entendemos que só os serviços públicos podem garantir o acesso de todos, como está determinado constitucionalmente, às necessidades básicas de saúde, educação, segurança social, à água.

Defendemos, a par do reforço do municipalismo, a luta pela regionalização. É fundamental democratizar as regiões porque elas existem.

Como é que vê o facto de o PS remeter para 2024 o lançamento do processo de regionalização. O PCP defende que devia ser mais rápido?

Esse adiamento é mais um dos inúmeros adiamentos que, ao longo dos anos, têm acontecido. É bom recordar que a Constituição da República coloca a necessidade de regiões administrativas, com órgãos eleitos. PS, PSD e CDs têm encontrado os mais variados argumentos para adiar o cumprimento deste preceito constitucional. Este é mais um adiamento.

Depois, em 2024, logo se verá se avança ou não – provavelmente, encontram outra desculpa qualquer para evitar que se cumpra este preceito constitucional. Estamos a desrespeitar a Constituição da República e, sobretudo, estamos a desrespeitar as populações, que têm o direito a exigir os seus órgãos regionais em vez de ter órgãos que são nomeados pelo Governo e que, obviamente, não respondem às populações. Estamos aqui com um défice democrático que devia ser corrigido tão breve quanto possível.

Saíram agora os primeiros dados do Censos de 2021 e confirma-se aquilo que todos esperávamos: dois terços do país estão em despovoamento acelerado, dois terços do país não recebem recursos, nem a atenção do Estado. Se houvesse regiões, teria de haver uma descentralização e isso criaria melhores condições para o desenvolvimento e haveria condições para, pelo menos, travar o processo de despovoamento que está em curso.

Não há descentralização sem regionalização, por isso entendemos que a regionalização devia avançar o mais breve possível.

O Governo está a fazer o caminho contrário? O Governo diz que está a fazer a descentralização como um processo para a regionalização....

O que o Governo está a fazer é a transferência dos défices dos vários ministérios para os municípios. Diz que descentraliza, mas as verbas que passam dos ministérios para os municípios não têm aumento, são as mesmas. Um conjunto de subsetores, como a saúde, educação ou a habitação estão subfinanciados.

O que o Governo nos propõe é transferir os encargos e as responsabilidades a que não responde. Está sujeito a pressão das populações para responder e quer sacudir a água do capote para cima dos municípios.

É mau que se transmita a ideia de que, com o PRR, vamos resolver todos os problemas, em particular o da habitação, porque não vamos. Não basta haver dinheiro, é preciso uma política de habitação nacional e investimento público nacional.


Neste processo a que chama de transferência de défices, como presidente da Câmara de Évora aceitou algumas das transferências de competências?

Os órgãos autárquicos de Évora recusaram essa transferência de competências porque não vinham acompanhadas dos recursos necessários para podermos concretizá-las e, por outro lado, introduzem uma situação de disparidade no território nacional relativamente aos cidadãos.

Em relação à educação ou à saúde, vamos passar a ter 308 ministérios da educação, 308 ministérios da saúde em que cada município decide por si. Estes direitos que devem ser universais, em que todos os cidadãos, em todo o território, devem ser tratados de maneira igual, vão ser diferenciados. Naturalmente, as câmaras mais ricas e poderosas vão destinar verbas para tapar os défices que o Governo transfere, mas as câmaras mais pobres, do interior, rurais, com menos meios não vão ter capacidade para responder a isso e, portanto, vai-se acentuar esse desequilíbrio regional, vai-se acentuar o tratamento desigual de cidadãos que estão nas zonas mais pobres do interior.

Este processo é uma regressão em relação ao que se pretenderia, que seria maior justiça social no acesso de todos àquilo que devem ser direitos universais.

A descentralização, do seu ponto de vista, aumenta as desigualdades no país?

A descentralização, se for feita através da regionalização será positiva; o que está a ser feito não é uma descentralização, é uma transferência de encargos e de défices e essa sim vai desequilibrar ainda mais o país e, sobretudo, vai colocar as populações a exigirem às câmaras aquilo que a grande maioria das câmaras não consegue dar, porque não tem meios para isso.

A regionalização é que permitiria uma verdadeira transferência de competências e ao nível já regional já seria possível distribuir competências em matérias como as de que temos vindo a falar?

Deve haver competências nacionais, regionais e locais. Tudo aquilo que são direitos universais, essas competências devem ser mantidas ao nível nacional e deve ser o Governo a responder para garantir a igualdade de tratamento dos cidadãos, nomeadamente as questões ligadas à saúde, à educação, à segurança social e à habitação.

Depois há o nível regional, em que podem ser tratadas competências ao nível do ordenamento do território, da mobilidade. Cada competência pode estar no seu nível e até há competências que podem ter os três níveis, têm é de ser articuladas.

Quando diz que algumas competências podem passar para o nível local, que competências é que acha que podem mesmo passar para as câmaras?

Por exemplo, questões ligadas à proteção civil. Claro que tem de haver um nível nacional, um nível regional e um nível local. Há competência que, porventura, estão ao nível nacional que podem ser tratadas ao nível local, desde que articuladas com os outros níveis.

Por exemplo, é possível articular as competências em relação às associações de bombeiros: o nível local deve ter uma competência de apoio às associações de bombeiros, mas o financiamento estrutural das associações de bombeiros não pode ser assegurado pelos municípios, senão os municípios que têm melhores condições dão condições diferentes de financiamento às associações.

Admito que um conjunto de licenciamentos industriais e económicos que hoje são tratados ao nível nacional possam vir para as câmaras. Nas questões do património, há competências que estão ainda na Direção Geral do Património e que é possível e desejável que sejam competências que sejam exercidas diretamente pelos municípios.

Uma das competências de que já falou como sendo um direito universal é a habitação. O Governo está a insistir muito na descentralização da habitação e é uma das prioridades do Programa de Recuperação e Resiliência. Acha que esta é uma competência que pode e deve passar para as câmaras ou entende, como tem sido o entendimento do PCP, que a habitação é uma competência do Estado central?

Antes do mais, ficamos satisfeitos por o Governo ter dado finalmente prioridade à habitação. Temos uma situação social gravíssima no país, em que mais de 20% da nossa população é pobre. Destes pobres, um terço trabalha; infelizmente, os rendimentos do trabalho não lhes permitem ter acesso a uma habitação digna.

Parece que, finalmente, depois de grandes esforços do Governo para entregar a habitação social às câmaras, o Governo decidiu assumir uma política nacional de habitação. Nós achamos que deve haver uma política nacional de habitação que inclui programas devidamente financiados pelo Estado para garantir o direito à habitação. Deve haver aqui um papel complementar dos municípios, que podem e devem ajudar o Governo a resolver este assunto, mas sempre de uma forma complementar e nunca assumir integralmente essa competência, porque não têm meios financeiros para fazer.

Aqui, em Évora, fomos um dos primeiros cinco municípios que elaboraram uma estratégia local de habitação, aprovámos o plano local de habitação e assinámos com o Governo o contrato para a primeira fase dos planos de habitação. Só em Évora estamos a falar de um investimento, nesta primeira fase destinada às famílias carenciadas, de 63 milhões de euros.

Se quiser multiplicar isto pelo país, temos a dimensão do problema da habitação que temos em Portugal. Obviamente que uma situação destas tem de ser resolvida com uma política nacional, com financiamentos nacional e os municípios têm de ser complementares.

O que está a ser feito não é uma descentralização, é uma transferência de encargos e de défices.


O Governo previa comparticipações na ordem dos 55%. É fazer as contas, como um primeiro-ministro dizia há uns anos... Se a Câmara tivesse de pôr 45%, o seu orçamento não chegava.

Os municípios querem participar, mas num papel complementar. Nós não temos défice de habitação em Portugal, temos um problema de custos de habitação. Depois do 25 de Abril, faltavam 800 mil casas em Portugal, isso foi resolvido. Neste momento, temos 600 ou 700 mil casas que podem ser usadas, mas não estão a ser. Um sistema que se rege pela lei do lucro não resolve os problemas do direito à habitação.

O PRR está a ser muito apresentado como uma espécie de solução para vários problemas, a começar pelo da habitação. Acredita que o PRR vai chegar às autarquias e vai de facto ajudar a resolver problemas?

Espero que sim, porque estamos a falar de muitos milhões de euros. Os municípios não têm capacidade económica e financeira para responder a esses problemas. Os números que estão indicados no PRR para a habitação, parecem ser muito significativos, e são, mas não chegam para resolver todos problemas. Longe disso! É fundamental que o PRR dê esse contributo, é mau que se transmita a ideia de que com o PRR vamos resolver todos os problemas e em particular o da habitação porque não vamos. Não basta haver dinheiro, é preciso uma política de habitação nacional e investimento público nacional.

Qual o objetivo do PCP nestas eleições autárquicas? Aumentar câmaras, eleitos...?

Queremos naturalmente reforçar as posições da CDU, do PCP e do PEV, porque entendemos que esse reforço de posições é positivo para contribuir para uma política nacional que defendemos de maior justiça social e que tenham em conta os problemas do país. Queremos reforçar e reforçar significa mais votos, mais câmaras, mais órgãos municipais e é por esse objetivo que nos batemos.

E recuperar, por exemplo, câmaras como a de Almada?

Naturalmente.


Não temos défice de habitação em Portugal, temos um problema de custos de habitação. Um sistema que se rege pela lei do lucro não resolve os problemas do direito à habitação.


Uma das questões que se falou muito na sequência dos resultados das eleições legislativas foi da possibilidade de o Chega estar a ganhar muitos votos em territórios de maioria CDU. Acha que este é um perigo também nestas eleições autárquicas e, nomeadamente, no Alentejo?

Acho que essa tese está desmentida se olharmos para os números nacionais. Não é uma questão que se coloque dessa forma. A preocupação que temos é que estamos a falar de uma força de extrema-direita, encapotada com um discurso populista com que pretendem atrair setores descontentes com a política nacional e local, mas que pretende sobretudo orientar esse descontentamento para uma alteração do regime democrático no sentido de introduzir um conjunto de valores não humanistas que apontem para uma sociedade de que há muito nos libertamos.

A preocupação é como é que essas forças de extrema-direita têm conseguido captar os votos e o descontentamento social. Obviamente tem a ver com a incapacidade que os governos, um pouco por toda a Europa. Isto obriga a uma reflexão sobre o modelo económico e social que tem vindo a ser imposto às nossas sociedades e que é o modelo neoliberal, que não responde – e, aliás, agrava – as diferenças de rendimento, de riqueza entre a população.

Essa é que é a preocupação fundamental e isso implica preocupações política para que possamos responder às necessidades das pessoas ao nível dos baixos rendimentos, dos salários, das pessoas que permitam às pessoas ter uma vida com dignidade.

E são alterações que o PCP também conta conseguir ir fazendo com o Governo?

É essa a vontade que temos. Gostaríamos que o Governo fosse mais longe, não tem ido. Temos conseguido que algumas propostas nossas possam avançar, mas não tem havido alterações substanciais nas políticas estruturais do Governo.

Temos conseguido avanços ao nível do salário mínimo, das reformas e pensões que são decisivos. Neste momento, 10% dos portugueses arrecadam 60% da riqueza nacional, o que significa que temos muita gente com valores muito baixo.

Por exemplo, aqui em Évora um terço da população são reformados, pensionistas que têm uma média de reforma na ordem dos 350 euros por mês e somos um concelho dos mais altos do Alentejo e até do país. Imagine o que vai por esse país fora! É evidente…

O que espera da Festa do Avante deste ano?

Fazemos a Festa do Avante há muitos anos, temos um trabalho com as populações durante todo o ano, com ou sem campanhas eleitorais. Naturalmente, a campanha eleitoral dá mais visibilidade. A Festa do Avante é, provavelmente, o maior evento cultural que existe em Portugal e tem uma adesão que vai muito além dos militantes e simpatizantes do PCP.

Espero uma Festa do Avante que mantenha essas características e que, a pouco e pouco, possa retomar a normalidade que a Covid-19 nos retirou.