Os dois Portugais do 10 de junho
12-06-2019 - 06:45

Em Portalegre, o país escutou dois discursos, duas vozes, ambas não socialistas, mas muito diferentes entre si.

Anteontem, 10 de junho, foi (mais um) dia de Portugal. A “corte” da República, habituada aos corredores atapetados do poder de Lisboa, deslocou-se à província (no caso, a Portalegre), para descentralizar as celebrações e “ligar-se” ao Portugal mais profundo, combatendo por um dia a desertificação do dito, e por um dia mostrando que não se esquece daquelas populações, de que em Lisboa quase só se ouve falar quando há incêndios florestais ou outras ocorrências do género. Note-se que considero a iniciativa louvável; o que critico são os 364 dias do ano em que quase tudo o que interessa se passa em Lisboa, quando muito no Porto.

Para um país tão pequeno, a clivagem dualista que o atravessa e a sua macrocéfala litoralização são um daqueles traços históricos que há muito existem e sem o qual muita coisa não se compreende.

Em Portalegre, o país escutou dois discursos, duas vozes, ambas não socialistas, mas muito diferentes entre si – a do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e a do cidadão (jornalista e escritor) João Miguel Tavares. Não me interessa elaborar sobre preferências – sobre quem falou melhor, sobre qual dos discursos vale mais a pena reter. Destas coisas, os portugueses retêm pouco e gostaram mais de um do que do outro… porque sim, ou sei lá! Considero, por isso, mais útil pô-los lado a lado, mostrando os dois Portugais que parece que andam desavindos nas suas vidinhas.

O presidente pode ser o homem dos afetos, popular (não populista), que chega depressa onde o governo não vai, e que escuta, consola ou anima aqueles que nunca puseram os pés na Assembleia da República e que não sabem quem são os “seus” deputados. Marcelo não foi muito original na sua prédica de Estado. Se alguma coisa de diferente se lhe notou foi um otimismo menor, ou uma contenção no seu entusiasmo que destoou do seu registo habitual. Reconheceu que há “insatisfação, cansaço, indignação e impaciências” nas pessoas, que a corrupção campeia e que a justiça emperra, e que precisamos de “um futuro muito mais justo, mais solidário e humano do que o passado que honrámos e o presente que construímos”. Lá pelo meio, contudo, veio a ladainha de que os portugueses são os “melhores do mundo” em tanta coisa, e que o país tem muito de que se orgulhar. Mesmo quando é contrapoder, mesmo quando faz da presidência uma provedoria de cidadãos descontentes, Marcelo é do poder, da elite, de Lisboa, do sistema.

Ora o poder de Lisboa parece não reparar que nada adianta aos portugueses anónimos serem chamados “melhores do mundo”, porque esse título oco, à parte os cinco minutos de êxtase por a seleção portuguesa ter ganho a Liga das Nações da UEFA, não lhes dá uma vida melhor, na saúde, no emprego, nos transportes, na justiça, na esperança, em suma. Foi isso que João Miguel Tavares quis lembrar. A sua geração é outra, a sua mundivisão é outra, o seu foco de observação é outro. Se há “eles” (os governantes), Tavares falou em nome do “nós”, os governados, e deixou, entre outros, três alertas relevantes, todos convergentes no apelo feito, aos políticos, para que nos “deem qualquer coisa em que acreditar”: primeiro, “que não é fácil saber porque é que estamos a lutar hoje em dia”; segundo, que se está a desvanecer “o sonho de amanhã ser-se mais do que se é hoje”; terceiro, que um país político distante, corrupto e amnésico, está a produzir “uma geração de adultos (e de jovens) desencantados, incapazes de acreditar num país meritocrático”.

Do pessimismo vem a desesperança, desta resulta o fatalismo e, no fim da linha, pouco mais sobra do que um cinismo vertido em apolitismo. E tudo isto se nota e mede nessa coisa chamada abstenção…