​Rebeldia
22-06-2018 - 06:19

Um cristão conformado ou conformista é uma contradição nos termos. A fé não é uma bengala, é uma espada.

lguns crentes partilham com o ateísmo uma ideia apressada e pachorrenta de fé. Nesta visão, a fé é um mero conforto, um amparo, que, mais cedo ou mais tarde, cria conformismo. Esta é a visão caricatural que o ateísmo vigente tem da fé e do crente, que é retratado como alguém amorfo, um ser frágil que se remete à concha depois de exterminar todas as dúvidas e perguntas.

Contra este ar do tempo, convém recuperar a ideia de que a fé é uma fonte de rebeldia. A ideia de Deus, sobretudo quando encarna em Jesus, implica uma atitude de constante questionamento dos poderes e modas de cada tempo histórico. Só é preciso um palmo de memória histórica para compreendermos este ponto.

A reboque do black lives matter, muito se tem falado de escravatura e segregação. Pois bem, convém recordar que a escravatura foi ilegalizada pelo ocidente devido ao activismo cristão. Uma série de filmes de fácil acesso ajuda-nos a compreender esta rebeldia baseada no evangelho: em “Amazing Grace”, vemos a acção do político cristão William Wilberforce, o motor inglês da ilegalização do tráfico de escravos nos oceanos; em “Doze Anos de Escravo”, a personagem de Brad Pitt é um oráculo cristão que deixa um aviso: uma nação (EUA) que permite este escândalo aos olhos de Deus merece ser punida; em “Lincoln” fica claro que a ideia cristã de homem – direito natural - esteve na base da oposição moderada (Lincoln) e radical (Thaddeus Stevens) ao mal absoluto que era a escravatura.

Se recuarmos um pouco na história, “A Missão” mostra como foi a ética católica que colocou os índios no perímetro da humanidade; os jesuítas enfrentaram os colonos e as coroas, que viam na figura do índio algo que devia ser tratado no âmbito do direito comercial. Se sairmos da escravatura e entrarmos na segregação, “Selma” mostra como a fé cristã de negros e brancos foi fundamental no movimentos dos direitos civis.

E o que dizer da grande revolta alemã contra o nazismo? O filme “Valquíria” mostra como o grande golpe contra Hitler nasceu na fé de um militar cristão. Entre a lealdade a Deus e a lealdade ao chefe, Claus von Stauffenberg optou pela lealdade a Deus e à consequente revolta contra o poder nazi. Já que estamos num dos paradigmas do mal, Alemanha nazi, também podemos recordar um dos grandes teólogos cristãos do século XX, Dietrich Bonhoeffer, que foi enforcado por ter sido implicado na conjura de von Stauffenberg.

O pensamento de Bonhoeffer chegou ao seguinte dilema: devo aceitar a ordem nazi não recorrendo à violência, ou recorro à violência e mesmo ao homicídio (tiranicídio) para livrar o meu país deste mal? Matar pode ser um mal menor quando o alvo é alguém como Hitler? Dietrich Bonhoeffer chegou à conclusão de que matar o mal era o mal menor. Se há guerras justas, também há rebeliões justas. Como pastor, podia ele simplesmente consolar as vítimas atropeladas pelo condutor louco? Não. Ele tinha de fazer tudo para tirar o louco do volante. Não sujar as mãos pode ser a grande sujeira.

Estes são só alguns exemplos de uma evidência que me parece esquecida por ateus e por muitos crentes: um cristão conformado ou conformista é uma contradição nos termos. A fé não é uma bengala, é uma espada.