"Andar de bicicleta era uma liberdade". A história de António Alves, da Volta a Portugal para a oficina
24-07-2024 - 08:10
 • Luís Aresta , Eduardo Soares da Silva e Renascença

Foi nome consagrado no ciclismo nacional e chegou a receber convite para competir na mesma equipa de Joaquim Agostinho. Três décadas depois de acabar a carreira, mantém as memórias vivas ao arranjar bicicletas.

Bicicletas desmontadas, selins, câmaras de ar e fotografias dos tempos de ciclista. A pequena oficina de António Alves, no Bairro do Cedro, em Vila Nova de Gaia, é um labirinto apertado onde bicicletas por reparar se cruzam com as memórias do antigo atleta.

O ciclista é natural de Mafamude, em Gaia, tem 68 anos e, entre 1973 e 1993, foi figura do ciclismo nacional.

O terceiro lugar na Volta a Portugal ao serviço da Recer-Boavista, em 1989, foi um dos pontos altos da carreira. Nesse ano, foi Joaquim Gomes o vencedor da prova. Em 1983, marcou presença no Tour de L’Avenir, a Volta a França do Futuro, tendo conquistado a camisola da montanha.

Hoje, a pequena oficina de 30 metros quadrados é um refúgio para manter o ciclismo no coração: "Nunca esqueço, está sempre cá dentro, é uma forma de me distrair, desligar do stress. Trabalho na segurança privada e desde 1994 que tenho esta atividade, quando deixei de correr. Sou segurança e isto é mais para distração."

Os clientes são os amigos e reparar as bicicletas ajuda a recordar as boas memórias em cima da bicicleta: "Andar de bicicleta era uma liberdade. Dizia aos meus amigos que era pago para fazer o que gostava. Comecei em 1973, ganhava-se mais ou menos".

Aponta que, no seu tempo, os ciclistas vinham quase todos das classes mais pobres. E vê aí um grande contraste em relação aos dias de hoje.

"Agora é ao contrário. O ciclismo é algo muito caro, nem todos têm acesso à modalidade", aponta.

Começou a carreira na Ambar antes de ir para o Porto. Pelo meio, recebeu uma proposta para ir correr para França na equipa de Joaquim Agostinho: "Ele era um grande amigo, veio ter comigo quando fui a França, convidaram-me para a equipa dele, mas o FC Porto ofereceu o mesmo valor".

Ficou nas Antas, pela proximidade a casa, e o FC Porto "acabou com o ciclismo no ano seguinte".

Correu ainda pelo Sporting, Coimbrões e pelo Boavista. Cruzou-se com nomes consagrados do ciclismo nacional: para além do ícone Joaquim Agostinho, António Alves foi contemporâneo de Fernando Mendes, Joaquim Leite e Marco Chagas.

"Eramos todos amadores, quase todos trabalhávamos porque só havia a Volta a Portugal, o Porto-Lisboa e umas provas domingueiras. Eu só vivi do ciclismo, devia ganhar no FC Porto uns 17 contos por mês, mas soube recentemente que não contava como ordenado. Era um subsídio, não eramos funcionários, é como se fosse recibo verde. Havia prémios e um subsídio", recorda.

Em dia de arranque da Volta a Portugal, Alves acredita que a prova "já não é o que era".

"Hoje é um Grande Prémio. A própria UCI diz que não podemos ter mais do que 10 ou 12 dias. O problema é que somos um país pequeno, não temos equipas de topo. A Volta ao Algarve é no início da época, vêm aqui de preparação. A Volta a Portugal, se ganhar dimensão, acabam por vir todos, mas não temos pontuação para fazer uma volta maior", lamenta.

"Havia dopagem e de que maneira"

Venceu várias etapas da Volta a Portugal, foi quarto numa Volta ao Alentejo e esteve numa Volta a França do Futuro. Ainda assim, o maior feito da carreira foi o terceiro lugar na Volta a Portugal de 1989, conquistada por Joaquim Gomes, atual diretor da prova.

Uma acusação tirou-lhe as asas quando era o líder da geral.

"A etapa decisiva foi o contrarrelógio em Loulé, quando uns colegas disseram que estava positivo [a doping]. Era eu o camisola amarela, mas fiz fé no que eles disseram. Eles faziam o controlo de forma diferente, foi um dia para esquecer. Acabei por fazer o resto da Volta. Quando me encontrei com o médico, ele disse que estava negativo. Foi uma mentira dos meus próprios colegas", explica.

No entanto, António Alves revela que o doping era um cenário comum nesses tempos.

"Havia dopagem e de que maneira. O doping era quase geral, por médicos ou por iniciativa própria. Também tomava fortificantes, mas nunca droga. Acusei duas vezes positivo uma substância para a sinusite. Sabia-se tudo, nos treinos vamo-nos conhecendo. O doping... todos tomam", acusa.

O ex-ciclista espera mais investimento no futuro no ciclismo nacional, para melhorar a Volta a Portugal e para dar condições aos jovens ciclistas portugueses. Lamenta que o ciclismo feminino não tenha qualquer expressão.

"Perguntei a uma rapariga como corria e ela disse-me que tinha um 'paitrocínio'. Nos homens, já é difícil uma entidade apoiar, fico de boca aberta com o que vejo no feminino. Só soube que a Volta a Portugal existiu quando acabou", lamenta.

Vê, ainda assim, um indicador de esperança na exibição histórica de João Almeida no Tour: "Há um que é ainda melhor do que ele, que é o Pogacar, mas não muito. Não sei se vai como chefe de fila à Volta a Espanha, mas é um grande corredor. Não é só o João Almeida, há os gémeos Oliveira, o Rui Costa, que foi campeão do mundo. É pena Portugal não ter mais miolo".