Lei da eutanásia. “Estamos a criar um direito à morte. Isto é altamente preocupante”
25-11-2022 - 23:07
 • Ana Catarina André

A presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida considera que a lei da eutanásia, que vai agora ser votada, se afasta da tentativa inicial de equilíbrio entre a proteção da vida e o respeito pela autonomia dos doentes. “Estamos a assistir já à chamada rampa deslizante.”

Sem o conceito de doença fatal, o texto da lei da eutanásia, que vai agora a votação, é mais abrangente do que as propostas anteriores, enquadrando mais situações em que é possível recorrer à morte medicamente assistida. Um alerta deixado por Maria do Céu Patrão Neves, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que afirma que a “primeira peça legislativa era bastante restritiva” e foi “sofrendo sucessivas revisões no sentido de um alargamento cada vez maior”.

Em entrevista à Renascença, a académica critica, em nome pessoal, “a pressa” do parlamento em decidir sobre esta matéria e as lacunas no acesso à saúde em Portugal. “Não há dúvida certamente para ninguém, nem tão pouco para os deputados que assinam esta legislação, de que é muito mais urgente satisfazer as necessidades de cuidados de saúde em vida.”

A lei da eutanásia vai voltar a ser votada no Parlamento. Como é que o Conselho Nacional de Ética olha para este novo texto? Considera-o suficientemente sólido?

O Conselho Nacional de Ética fez as recomendações que considerou fundamentais e essenciais para uma maior qualidade legislativa, tendo em atenção a complexidade e a sensibilidade do tema, e o muito que aqui está em causa. Trata-se efetivamente da antecipação da morte de algumas pessoas que o possam desejar. No último parecer que o Conselho Nacional de Ética fez, no dia 9 de junho, refletiu sobre um documento muito próximo daquele que vai a votação, e que inclui os contributos do PS, da Iniciativa Liberal, do Bloco de Esquerda, do PAN. Nessa ocasião, apresentou quatro recomendações fundamentais. Uma delas foi efetivamente atendida. O Conselho dizia que era importante a disponibilização do acompanhamento psicológico nestes processos de tomada de decisão. E esta última versão, que vai agora a votação, inclui o acompanhamento por parte de um psicólogo clínico, sendo que esse acompanhamento só será retirado, se expressamente for esse o desejo da pessoa que pede uma morte medicamente assistida. Agora, lamentavelmente, temos três outras recomendações que o Conselho fez e não foram atendidas.

O texto prevê que pode recorrer à morte medicamente assistida quem está em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave incurável. Numa das críticas que teceu em nome do Conselho Nacional de Ética, alertou para o facto de esta lei abranger mais situações por comparação à anterior proposta.

É um facto. Também em relação a esta matéria, o Conselho se pronunciou, no mês de junho, chamando a atenção para o facto de se alargar, neste último documento, sem qualquer fundamento, o âmbito da morte medicamente assistida, através desta mera exigência de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave, incurável. Estamos aqui perante conceitos de muito difícil precisão, especificação. O que é um sofrimento de grande intensidade? Como é que vamos avaliar a intensidade que justifica o pedido de morte medicamente assistida? [Fala-se em] gravidade extrema. Qual é a gravidade extrema? Estamos a cair em termos que são muito amplos, que têm uma forte carga subjetiva. Aliás, o Conselho apontou precisamente este facto. Se olharmos para as últimas propostas legislativas, verificamos um apagamento da noção de fatalidade. Ao ter-se apagado o fatal, criou-se obviamente um horizonte mais amplo de pessoas que se podem candidatar à morte medicamente assistida. A designada rampa deslizante está já em atuação.

Antes mesmo de termos a primeira lei sobre a eutanásia aprovada e promulgada e efetivamente implementada, já estamos a assistir à efetividade desta rampa deslizante
Quais são os riscos dessa rampa deslizante, como lhe chama?

Esta rampa deslizante é uma realidade óbvia para quem estuda estas matérias e para quem tem estudado aquilo que se verifica noutros países em que a eutanásia foi implementada. Refere-se ao facto de a primeira peça legislativa ser bastante restritiva e depois ir sofrendo sucessivas revisões no sentido de um alargamento cada vez maior. O facto quase inédito em Portugal é que, antes mesmo de termos a primeira lei sobre a eutanásia aprovada e promulgada e efetivamente implementada, já estamos a assistir à efetividade desta rampa deslizante. Por isso, claro que se estabelece aqui um certo receio daquilo que poderá vir a ser o futuro. Um último aspeto ainda, se me permite. Quando começou este processo de morte medicamente assistida, procurava-se estabelecer um equilíbrio entre o direito a proteção da vida e o respeito pela autonomia do paciente. Por isso, tínhamos por parte do legislador uma tentativa de equilíbrio entre a proteção da vida, que está estabelecida na Constituição, e o respeito pela autonomia do doente. Neste momento, estamos a avançar a passos largos para um designado direito à morte, para o qual o próprio Conselho Nacional de Ética de vida chamou a atenção no seu último parecer.

Pode explicar melhor?

Estamos a criar um novo direito, um direito à morte. Isto é altamente preocupante, sobretudo quando o grande desejo da esmagadora maioria dos pacientes que solicita a eutanásia, aquilo que procura efetivamente não é morrer, é não sofrer. É uma vida digna, na sua vida natural, mas uma vida sem sofrimento. E por isso é que é inevitável associarmos o debate sobre a eutanásia ao debate sobre os cuidados paliativos. Muitas pessoas procuram separá-los, mas é impossível, porque de facto, todos os estudos apontam para esta vontade de não sofrer. Em Portugal, apenas 30% dos casos referenciados têm acesso a cuidados paliativos. Os outros 70% não. E basta uma pessoa sofrer sem necessidade, quando há a possibilidade médica de o libertar desse estado para se tratar de uma morte ou de um sofrimento verdadeiramente indignos.

Estamos a falar de mais de dois terços dos portugueses sem acesso a cuidados paliativos.

Este é um drama. Poderíamos acrescentar, ainda aqui, algo que foi apontado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no último documento e que não foi alterado. Aliás, sublinho que das quatro recomendações do Conselho, apenas uma foi integrada. Ora, quando o Conselho Nacional de Ética, que é o organismo próprio com competência nesta área, faz as suas recomendações, fá-las na convicção de que está a contribuir positivamente para uma melhor peça legislativa, para a qualidade da legislação. Por isso, com certeza que lamentamos que as recomendações não tenham sido acatadas. Uma delas dizia respeito ao facto deste projeto de morte medicamente assistida garantir acesso a cuidados paliativos a quem solicita a eutanásia. Ora, quando sabemos que temos uma lei de bases para cuidados paliativos desde 2012, que temos também desde 2018 a lei sobre os direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida, que também prevê os cuidados paliativos a todos aqueles que deles necessitam e, mesmo assim, continuamos a ter 70% dos pacientes com necessidade de cuidados paliativos arredados da satisfação desta necessidade básica, como é que vamos entender que bastará solicitar a eutanásia para ter acesso aos cuidados paliativos? Espero que não seja nesse sentido que se venha a avançar, mas ao limite parecerá que se pessoa solicitar a eutanásia, vai ter imediatamente acesso a cuidados paliativos. No limite, isto pode ser uma estratégia para conseguir efetivamente acesso aos cuidados paliativos, já que 70% da população não o tem. Isto seria uma caricatura e queremos acreditar que assim não venha a acontecer, mas a verdade é que, perante o documento que temos na frente, esta não é uma possibilidade que se possa afastar.

O que me parece ainda mais grave é ser o médico orientador que vai apresentar ao candidato à eutanásia os tratamentos aplicáveis, viáveis, disponíveis.
Voltando ainda ao tema do acompanhamento psicológico. O texto refere, e passo a citar, "que cabe ao psicólogo a tarefa de garantir a compreensão plena das decisões do doente, bem como o esclarecimento das relações e da comunicação entre o doente e familiares, assim como entre o doente e os profissionais de saúde, no sentido de minimizar a possibilidade de influências indevidas na ação". Não há margem para uma avaliação psicológica de quem pede a morte medicamente assistida?

Tal como está prevista no documento, não vejo que seja essa a função do psicólogo. A avaliação da seriedade, da consistência do pedido por parte da pessoa que requer a morte medicamente assistida é feita essencialmente pelo designado médico orientador, sendo que se este tiver alguma dúvida em relação a essa matéria, pode vir a chamar um psiquiatra. O psicólogo clínico fará, sobretudo, um acompanhamento do bem-estar, da estabilidade do doente, tendo uma sensibilidade particular nas relações que estabelece com a equipa e na forma como compreende a situação e depois dá o seu consentimento informado às propostas que vão sendo feitas. Por isso, o psicólogo clínico não intervém na avaliação, dizendo se o doente está ou não em condições jurídicas, legais ou médicas para solicitar a eutanásia. Essa tarefa é feita por outros.

Considera que o ónus do acompanhamento está demasiado posto no médico orientador, uma vez que o parecer de um psiquiatra só é solicitado, se esse mesmo médico orientador tiver dúvidas sobre a capacidade da pessoa solicitar a morte medicamente assistida, ou sobre a possibilidade de ter alguma perturbação psíquica ou outra?

Não diria que há um ônus demasiado no médico orientador, porque aquilo que está em causa não é o médico orientador. O que está em causa verdadeiramente é a pessoa que solicita a eutanásia. Essa pessoa é que é o centro da ação e por isso o médico orientador age em função da pessoa doente. Uma das recomendações do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida nesta matéria é que o médico orientador fosse da confiança do próprio doente. Isto não está minimamente assegurado. Só se afirma que existe um médico orientador, que esse será selecionado pelo doente, mas não se estabelece aqui qualquer tipo de confiança no que diz respeito, por exemplo, a ser o seu médico assistente, seu médico de família, alguém que o conhece, que já o acompanhou. Este médico orientador pode, ao limite, fazer parte de uma lista de médicos que estarão disponíveis para a prática da morte medicamente assistida. O que me parece ainda mais grave, para além deste facto, é ser o médico orientador que vai apresentar ao candidato à eutanásia os tratamentos aplicáveis, viáveis, disponíveis. Há hipótese de este desconhecer a pessoa, e não ser sequer da especialidade. Não obstante, competir-lhe-á apresentar os designados tratamentos aplicáveis, viáveis e disponíveis, o que é no mínimo paradoxal, porque será certamente o médico especialista da patologia predominante naquele doente que melhor estará habilitado para o fazer. E também isto não está previsto na lei.

Em muitos casos, o sofrimento é motivado também, a par das questões físicas, por problemas familiares, afetivos. Enquanto sociedade estamos no bom caminho nesta matéria?

Obviamente que não. Não sofremos apenas porque temos dor física. Sofremos porque temos dor psicológica, espiritual. Sofremos [por causa] do abandono familiar e social, por falta de autoestima, por falta de meios económicos e financeiros para nos sentirmos confortáveis, quentes na nossa casa, com uma alimentação decente e equilibrada. Há múltiplas formas de sofrimento e é precisamente à vida que devemos atender em primeiro lugar. Este aspeto é fundamental e tem sido trazido também à liça, quando abordamos a questão da morte medicamente assistida, sobretudo quando percebemos que hoje, em Portugal, temos cidadãos que não têm acesso a um médico de família, o que significa que também não têm acesso a cuidados de saúde regulares adaptados às suas necessidades; quando sabemos que os prazos para consultas de clínica geral, consultas de especialidade, cirurgias estão tão afastados das necessidades das pessoas. Entretanto, aquilo que verificamos neste documento, que vai agora a votação, é que a grande diferença entre a última proposta, em junho, e esta que já está consensualizada, é o aspeto verdadeiramente positivo da integração do psicólogo clínico, e a imposição de prazos.

O que lhe parece esta imposição?

Temos um prazo mínimo de dois meses, desde o pedido da eutanásia até à sua realização. A existência de um prazo mínimo parece positiva. Ao mesmo tempo que temos o estabelecimento de prazos nas várias etapas, ao longo do processo da morte medicamente assistida, claro que o cidadão comum se interroga sobre os prazos que também estão estabelecidos para receber cuidados de saúde. É muito difícil – diria eu, e aqui mais em termos pessoais – descontextualizar totalmente o projeto de morte medicamente assistida dos cuidados de saúde em Portugal.

Estamos com uma pressa muito grande em fazer um bom enquadramento legislativo para a morte medicamente assistida
Mantém a crítica que fez, por diversas vezes, de que o parlamento tem pressa para decidir sobre a eutanásia?

Esta não foi uma posição que tenha sido alvo de reflexão por parte do Conselho, mas em termos pessoais, e aqui diria acompanhada por grande parte da população, vê-se que há uma pressa realmente muito grande em avançar com este documento. Estamos com uma pressa muito grande em fazer um bom enquadramento legislativo para a morte medicamente assistida, que deverá responder às expectativas de uma ínfima parte da população portuguesa, e continuamos a adiar sistematicamente aspetos como a disponibilização efetiva de cuidados paliativos, ou possibilidade de cada cidadão português poder ter médico de família. Todos temos consciência, vamos dizê-lo com franqueza, que mesmo as pessoas que têm hoje acesso a cuidados paliativos chegam já muito frequentemente nos últimos 30 dias da sua vida, o que significa que já chegam numa fase em que a dor é intensa, em que o controlo da dor se torna muito mais difícil. E tudo isto que seria absolutamente necessário prevenir em tempo útil, não tem merecido a mesma atenção, nem por parte do legislador, nem por parte do poder executivo, porque a verdade é que, com uma lei de bases sobre cuidados paliativos desde 2012, temos uma taxa que nos devia envergonhar, em que apenas 30% de portugueses têm acesso a cuidados paliativos. Ora, quando me pergunta se há pressa, perante estes factos, obviamente que haverá pressa. Só pode haver. Não há dúvida certamente para ninguém, nem tão pouco para os deputados que assinam esta legislação, de que é muito mais urgente satisfazer as necessidades de cuidados de saúde em vida.

Voltando a olhar para o texto da lei, que outras questões ficam por responder?

Há uma outra questão que ao Conselho Nacional de Ética pareceu de alguma forma paradoxal. O documento sobre morte medicamente assistida é estruturado a partir do princípio da autonomia, isto é, reconhece a cada cidadão o direito de dispor da sua vida. Ora, ao ver este documento, não podemos deixar de considerar surpreendente que o próprio ato de eutanásia, o momento em que se dá antecipação de morte, vai ter presente dois profissionais de saúde: o médico orientador e outro profissional de saúde. Parece bem ter uma segunda pessoa que se constituirá como testemunha. Mas o que parece paradoxal é o que vem a seguir: este médico orientador tem o direito de indicar outros profissionais de saúde, e o doente, aquele que vai ser efetivamente eutanasiado, tem apenas o poder de designar quem gostaria [que estivesse com ele], mas essa indicação por parte do doente tem de ser aprovada pelo médico orientador. Isto é no mínimo paradoxal. A pessoa que solicita a morte medicamente assistida, no mínimo, terá direito a estar, naquele momento final da sua vida, rodeada pelas suas relações afetivas mais significantes e terá de ter plena autonomia para decidir quem é que vai estar com ela, quem é que lhe vai dar a mão. Isto é realmente algo de paradoxal, [vai] contra o princípio da autonomia e é francamente desumano. Dir-me-ão que o médico orientador não será contra [a presença de entes queridos]. Não sei. O que diz na legislação é que o candidato à morte medicamente assistida aponta quem gostaria que o acompanhasse [naquele momento], mas estas pessoas têm de ser aprovadas pelo médico orientador. É paradoxal, é indigno, é desumano.

Atendendo às considerações do Presidente da República sobre a anterior versão da lei e às alterações que foram feitas, acredita que Marcelo Rebelo de Sousa possa recorrer de novo ao veto?

Não posso pronunciar-me sobre esse efeito. Direi apenas que algumas das questões suscitadas pelo Senhor Presidente da República tiveram resposta nesta peça legislativa. Atrevo-me a acrescentar, e aqui escudada pelo parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que haverá ainda muito espaço para melhorar a qualidade legislativa num assunto tão sensível e complexo como é o da morte medicamente assistida.