Maratona olímpica recria marcha revolucionária de 1789, em homenagem às mulheres atletas
09-08-2024 - 11:20
 • Salomé Esteves

Do Hôtel de Ville ao Palácio de Vesalhes, e de regresso ao centro de Paris: há 235 anos, quase sete mil mulheres marcharam pelo mesmo percurso para pedir pão e armas a Luís XVI. Pela primeira vez, a maratona feminina fecha o programa dos Jogos Olímpicos e é aberta ao público.

Não é a marchar, mas a correr, que atletas e público vão recriar a lendária marcha das mulheres de 1789, que marcou a Revolução Francesa. No ano em que se atingiu a paridade em competição, o Comité Olímpico Internacional homenageia as mulheres atletas com uma viagem no tempo.

De 5 para 6 de outubro desse ano, entre seis e sete mil mulheres parisienses partiram do Hôtel de Ville, em direção a Versalhes. Pediam reformas, armas e pão. Mas, depois de um cerco ao Palácio, forçaram o rei Luís XVI a regressar a Paris, retirando-lhe o que restava da sua autoridade.

A marcha irrompeu na manhã de 5 de outubro de 1789. À porta do Hôtel de Ville, onde funcionava a Câmara Municipal, milhares de mulheres enfrentaram a Guarda Nacional que, não impedindo a sua marcha, preveniu que pegassem fogo ao edifício.

Mas as forças leais ao regime queriam evitar um resultado desastroso para o rei. Liderados pelo Marquês de Lafayette, 15 mil homens da Guarda Nacional seguiram as mulheres até Versalhes.

A que ficou conhecida como a marcha das mulheres de 1789 durou seis horas, à chuva. Em Versalhes, várias revolucionárias foram recebidas na Assembleia e seis reuniram-se com Luís XVI, que acabaria por ratificar a Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos (Declaration des Droits de l’Homme et du Citoyen) e aceitar retornar a Paris.

Na manhã de 6 de outubro, uma multidão de 60 mil pessoas saiu de Versalhes atrás da família real. Durante o caminho, a caravana foi ladeada por mulheres. À chegada a Paris, no Palácio das Tulherias, Luís XVI perdeu o império e passou a ser apenas o rei dos franceses.

Desta vez, como há 235 anos, as maratonas feminina e masculina partem do Hôtel de Ville, no centro de Paris, em direção ao Palácio de Versalhes. Grande parte do caminho está traçado nas margens do rio Sena e passa por edifícios marcantes da capital francesa, como a Torre Eiffel, o Museu do Louvre e a Catedral de Notre-Dame, ao longo de um total de 42.195 km

Este ano, a maratona das mulheres vai fechar o calendário dos Jogos Olímpicos, a 11 de agosto, um dia depois da prova masculina. Mas nem sempre foi assim. Aliás, é a primeira vez que a ordem das provas é invertida e que as mulheres fecham o programa.

Há dois portugueses em prova: Samuel Barata, no primeiro dia, e Susana Godinho, no último dia.

Também pela primeira vez, o público pode correr os 42 km, a par dos atletas olímpicos, na “Maratona para Todos” (Marathon Pour Tous). Os cerca de 20 mil lugares abertos ao público foram sorteados no início de 2024, depois de os participantes completarem um conjunto de desafios.

Estes atletas podem participar no percurso completo ou numa corrida alternativa de 10 km. A atribuição dos lugares também está sujeita a paridade de género.

Entre 1896 e 1984

A maratona faz parte do programa dos Jogos Olímpicos desde a primeira edição da era moderna, que aconteceu em Atenas, em 1896. Mas, nesse ano - e nos que se seguiram -, a prova era exclusiva aos homens atletas.

Nessa primeira edição dos Jogos modernos, em 1896, uma mulher tentou registar-se para a maratona, mas foi rejeitada. Mas não sem antes se rebelar contra o regulamento.

A 11 de abril desse ano, a atleta indiana Stamata Revithi correu os então 40 quilómetros um dia depois da prova masculina em que sete homens correram e apenas três cruzaram a meta final. Revithi completou a maratona em cinco horas e meia, mesmo depois de ser impedida de participar oficialmente.

Quatro anos depois, em Paris, os Jogos incluíram no programa provas femininas, mas a maratona só seria aberta às atletas 84 anos depois.

Foi a 5 de abril desse ano que Joan Benoit se tornou a primeira medalhada da maratona feminina, ao cruzar a meta com um tempo de 2:24:52. A maratonista americana estava a recuperar de uma cirurgia ao joelho, mas acabou por superar o seu melhor tempo por nove minutos.

Depois de concluir a maratona, Benoit disse, ao The New York Times, nesse dia: “Não sei como dizer isto sem parecer convencida. Mas foi uma corrida muito fácil para mim. Estava em controlo durante o temo todo. Estou muito surpreendida por não ter tido concorrência”.

A edição histórica da maratona olímpica feminina de 84 não deixou de ter um cunho português. Rosa Mota conseguiu a medalha de bronze, atrás da norueguesa Grete Waitz. Foi ao ultrapassar a recordista Ingrid Kristiansen e a chegar em terceiro lugar que Mota se tornou na primeira campeã olímpica portuguesa e ultrapassou o seu recorde pessoal, pouco depois das duas horas e 26 minutos.

Rosa Mota tinha, então, o título de campeã europeia, depois de vencer a primeira maratona feminina da Europa de 1982, à frente tanto de Benoit como de Waitz.

Até ao ano histórico de 1984, o Comité Olímpico Internacional não permitia a participação de mulheres em provas superiores a 1500 metros.

As restrições foram colocadas em 1928, nos Jogos de Amesterdão. Nesse ano, houve cinco eventos de atletismo feminismo: os primeiros na história dos Jogos. Mas a prova de 800 metros acabaria por causar polémica.

Lina Radke finalizou a corrida em dois minutos e 16 segundos, confortavelmente, e fixando um novo recorde do mundo. Mas muitas das restantes atletas mostraram sinais de exaustão, que foram extrapolados na imprensa.

Em 1997, Anita DeFrantz, então vice-presidente do Comité Olímpico Internacional confessou que, à data, a organização e a comunicação social tinham decidido que as mulheres eram frágeis demais para participar em eventos de longa duração, chegando a “fabricar factos”.

Esta comoção levou à eliminação de provas superiores a 800 metros do programa olímpico feminino até 1960, 32 anos depois. Nesse ano, a medalhada de ouro na mesma prova foi Lyudmila Shevtsova, da União Soviética.

Em 1972, o Comité Olímpico abriu as provas de atletismo superiores a 1500 metros a atletas femininas. Mas teriam de esperar mais 12 anos para correr os 42 km da maratona.

Não há nenhum atleta que tenha recebido a medalha de ouro mais do que uma vez na maratona. Mas Rosa Mota foi medalhada duas vezes nesta prova. Além da medalha de bronze de 84, arrecadou o outo em 1988, nos Olímpicos de Seul, na Coreia do Sul.