Migrantes. "Há interesse em acrescentar obstáculos e criminalizar organizações que tentam dar resposta”
15-03-2023 - 22:01
 • Beatriz Lopes

De acordo como o projeto Migrantes Desaparecidos, da Organização Internacional para as Migrações (OIM), 26.148 pessoas morreram ou estão desaparecidas no Mediterrâneo desde 2014 - 390 só em 2023.

“Imaginemos que estávamos numa praia do Algarve. Como é que ninguém, ninguém, dá auxílio a pessoas a menos de um quilómetro das nossas costas?”.

A pergunta é lançada por João Antunes, diretor-geral dos Médicos Sem Fronteiras em Portugal, ao recordar o naufrágio do dia 26 de fevereiro que matou pelo menos 86 pessoas, a 150 metros da praia turística de Steccato di Cutro, na região italiana de Crotone.

No desastre, morreram 35 menores, 25 dos quais tinham menos de 12 anos. Entre os sobreviventes, há também crianças que ficaram órfãs, como um rapaz afegão de 12 anos que perdeu a família inteira, de nove elementos.

No Geração Z desta semana falamos sobre as crianças e jovens migrantes que chegam à União Europeia desacompanhados. Que problemas enfrentam quando batem às portas da Europa? Por que razão precisam de dormir na rua durante meses e meses à espera que um tribunal dê luz verde a um pedido de asilo? Qual a resposta ao expectável aumento de problemas de saúde mental? O que diz a justiça e os direitos internacionais sobre as obrigações dos Estados-membros para com os menores?

"Resgatar vidas humanas não pode ser uma questão de sim ou de não. É uma questão que tem de ser sempre sim”, sublinha João Antunes, que acusa a União Europeia e os estados-membros de estarem a falhar “naquilo que é a sua responsabilidade”.

“O dever ao auxílio, ao resgate, à vida é um valor suficientemente importante que não deveria trazer nenhuma questão adicional. (…) Neste momento, não só existe uma total ausência de vontade em dar resposta a esta situação, como também há um interesse explícito em dificultar e acrescentar obstáculos e até criminalizar as organizações e as pessoas que decidem dar esta resposta. O navio «Geo Barents» que tínhamos no Mediterrâneo está apreendido pelas autoridades italianas com alegações que não fazem qualquer sentido”, sublinha.

"Não adianta aplicar uma medida num país e noutro não. Isto é uma questão que diz respeito a todos os europeus. Tem de haver uma política migratória comum que dê resposta a uma situação que é real: nós temos uma das rotas migratórias mais mortais, uma rota que neste momento e só em 2023, faz com que dez pessoas por dia tenham perdido a sua vida ou estejam desaparecidas”, alerta o diretor-geral dos Médicos Sem Fronteiras em Portugal.

De acordo como o projeto Migrantes Desaparecidos, da Organização Internacional para as Migrações (OIM), 26.148 pessoas morreram ou estão desaparecidas no Mediterrâneo desde 2014 - 390 só em 2023. É, aliás, no Mediterrâneo, onde os números são mais elevados: em África, por exemplo, morreram ou desapareceram 12.521 migrantes, nas Américas o número fixa-se nos 7.655 migrantes e na Ásia são 5.518.

João Antunes admite que o facto de Portugal “não estar numa linha da frente” faz com que seja “um bocadinho mais difícil para os portugueses entenderem todas estas condicionantes”, mas desafia todos a não serem “ilhas, talvez solitárias em casa, ligadas à televisão e saturadas”.

“É importante sentirmo-nos conectados, ligados a este mundo de alguma forma. Seja através de uma opinião, de uma causa, de uma manifestação, de um diálogo que tu estás a reivindicar para ti, para os teus ou para o próprio planeta.”

“Se achamos que estas coisas não são importantes, então o que é que será importante na vida?”, questiona o diretor-geral dos Médicos Sem Fronteiras em Portugal que recorda a última missão que teve num campo de refugiados no Sudão, com mais de 50 mil pessoas.

“Lembro-me que a nossa clínica estava no centro do campo. E nas primeiras semanas a situação foi extremamente difícil. São semanas quase sem parar nem para dormir. As grávidas e as crianças eram as nossas principais pacientes. E depois de três ou quatro meses, aquela fila de espera começou a diminuir e aquele campo de refugiados converteu-se também num campo de futebol. Connosco a termos de ir buscar as bolas aos telhados. É um resultado brutal ver esta mudança”, partilha.