Filósofo, professor catedrático, ativista e ex-deputado, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa e doutor em Motricidade Humana pela Universidade Técnica. Provedor da Ética no Desporto, desde 2013, é ainda autor e co-autor de mais de 50 livros, e de inúmeros artigos e ensaios.
Em 1986, apresentou os fundamentos de uma nova ciência social e humana, a ‘ciência da motricidade humana’, que viria a inspirar a designação da Faculdade de Motricidade Humana onde hoje se lecionam os cursos de Ciências do Desporto, Dança, Ergonomia, Reabilitação Psicomotora e Ciências da Nutrição, entre outros.
A um mês de completar 86 anos, Manuel Sérgio viu o seu nome dado a uma nova cátedra na Universidade Católica Portuguesa (UCP). A cátedra “Manuel Sérgio - Desporto, Ética e Transcendência” é promovida pela Faculdade de Teologia da UCP, com apoio do Instituto Português do Desporto e Juventude, e pretende responder à necessidade de estudar e investigar esta área, superando o discurso simplista e mesmo violento que muitas vezes domina o setor.
Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia o filósofo lembra que o desporto “é um espaço de transcendência” e não existe “sem ética”. Fala do exemplo que atletas, dirigentes e treinadores deviam dar, e de como o espaço de comentário desportivo está cheio de gente que “não sabe o que é o desporto”. Aos portugueses que estão a fazer cada vez mais exercício físico, lembra que “para ser feliz não chega correr”.
Como é que se sente perante a criação de uma cátedra com o seu nome, ‘Manuel Sérgio - Desporto, Ética e Transcendência’, na Universidade Católica Portuguesa?
Francamente nunca esperei ter uma cátedra com o meu nome. Mas, o que há a fazer é estudar, analisar se as minhas ideias, de facto, têm valor para tanto. Eu fiz um corte epistemológico com o físico do cartesianismo – como sabe, a expressão ‘Educação Física’ é um cartesianismo, educação do físico -, e digo que na educação física, o que se tem de estudar não é só o físico, é o homem, que é o corpo, alma, desejo, natureza, cultura, sociedade. Tudo isto, toda esta complexidade, a caminho da transcendência.
Até por causa desse olhar de complexidade sobre o fenómeno desportivo, tem algum significado especial para si que a cátedra seja na Universidade Católica Portuguesa, com o apoio do Governo?
Encontrei na Universidade Católica o espaço ideal para estudar a transcendência, que para mim é fundamental. A transcendência é o sentido da vida, quem não se transcende, verdadeiramente não vive.
E no desporto isso também deve existir?
O desporto, de facto, é um espaço de transcendência. Quem não se transcende não pode fazer, por exemplo, alta competição. A alta competição é também um espaço de transcendência. O ser humano tem também de caminhar para o Absoluto.
Eu costumo dizer que a vida sem Deus é um absurdo, com Deus é um mistério. Uma pessoa não pode falar destes problemas da transcendência como fala de um fenómeno físico-químico, não é? É uma coisa interessante, se nós mandarmos uma lágrima para o laboratório, a lágrima é água e cloreto de sódio. Ora, uma lágrima é mais do que isso: este mais do que isso, a ciência não explica…
É por isso que esta cátedra pode ser importante para que haja várias visões sobre o fenómeno desportivo, que em Portugal tende a ser muito simplificado?
Normalmente simplifica-se o desporto para qualquer pessoa poder falar dele. Nós reparamos nalgumas estações televisivas, radiofónicas, na realidade qualquer pessoa fala. Se for de cardiologia, se for de direito do trabalho, vão os especialistas, aqui não. Qualquer pessoa entra, qualquer pessoa fala, qualquer pessoa quer esclarecer…
No colóquio inaugural desta cátedra, na Universidade Católica, defendeu que há muita gente a falar de desporto, que parece muito fácil, mas que há necessidade de estudo e de investigação no desporto. Referia-se aos vários painéis televisivos de comentário desportivo, sobretudo de futebol?
Sim, principalmente do futebol. E falam de desporto como se fosse uma coisa menor, sabe? Uma coisa de que se pode falar assim…
Há um cientista português que diz que uma pessoa só é especialista no fim de 10 mil horas de estudo. Ora, eu julgo que as tenho. Vou fazer em breve 86 anos e desde 1968 estudo muito o desporto, trabalho a esse nível, sempre com o objetivo da transcendência.
É preciso mudar, sabe? Em todas as áreas. Nós estamos a aproximar-nos da quarta revolução industrial, estamos a aproximar-nos de um mundo novo, temos de preparar-nos para o novo. O triste não é mudar de ideias, o triste é não ter ideias para mudar. Há necessidade de o desporto se preparar para este mundo novo. O desporto, atualmente, designadamente o de alta competição, reproduz e multiplica as taras do sistema capitalista: a alta competição, o recorde, a medida, a performance…
O valor monetário dos atletas…
Ficamos ao nível do quantitativo. A Universidade Católica, por exemplo, estuda o quantitativo e o qualitativo, a razão e a fé, estuda fenómenos que normalmente, noutras instituições, não se estudam. Pode acolher as minhas ideias e eu posso beneficiar, porque também eu tenho muito que aprender.
Na sua reflexão há muito a perceção que os valores do desporto estão muito para além da perseguição da vitória como um fim absoluto – mesmo com recurso ao doping ou a métodos menos próprios por parte de dirigentes desportivos.
Isto é uma prova de que algumas pessoas que estão no desporto não sabem o que é o desporto. O desporto é também uma atividade física, só que é uma atividade física com ética, com valores, e as pessoas esquecem isso. Não há desporto sem ética. Não há desporto sem aqueles valores sem os quais se torna impossível viver humanamente.
E que valores é que hoje o desporto em geral passa?
São os valores da sociedade capitalista. O capitalismo transforma tudo em mercadoria e o desporto é mais uma mercadoria, até os jogadores aparecem como mais uma mercadoria. Por isso tantos jogadores, quando deixam de jogar, sofrem bastante com isso. E há muitos antigos jogadores na miséria, porque Ronaldo, Messi, ganham milhões, mas a maioria ganha pouco. Depois, não lhes ensinam o sentido da vida.
Um dia li uma frase de um célebre neurologista, Viktor Frankl, que eu gosto de repetir: "Nós, médicos, passamos a vida a dizer aos doentes que façam exercício físico, que não comam açúcar, que evitem o sal, etc. Esquecemo-nos de lhes dizer que o primeiro fator de saúde é que a vida tenha sentido para nós”.
Há diferença entre durar e viver. A gente vai ao médico para durar, ora a gente devia aprender a viver, que é mais do que durar.
Muitos destes atletas são estrelas globais, mas estão ou não treinados para que a sua figura seja inspiradora destes valores e deste sentido de vida?
Não, de maneira nenhuma. Eles são treinados, dizem-lhe muitas vezes: “pá, trabalha, porque tu é que te safas, tu é que vais ganhar dinheiro”, aquela linguagem do desporto. A pessoa é empurrada, logo de garoto, para o reino do argentário, para o reino do quantitativo, quando a felicidade está noutro lado. Há muita gente cheia de dinheiro e que está sempre a dizer que não é feliz. A felicidade vem disto: quando encontramos o sentido da vida.
Muitos atletas são ídolos para as novas gerações. Deviam ter uma responsabilidade acrescida, na forma como são no exercício da profissão e na condução da vida pessoal? Isso nem sempre acontece…
Não, é difícil. A vida deles é mediaticamente escancarada pelas revistas cor-de-rosa. Vemos que eles estão longe do sentido da vida.
Não nos devemos esquecer que vivemos num tempo do espetáculo, em que o que não é espetáculo, não é, não existe. Há necessidade do espetáculo, há necessidade de aparecer como ator. Portanto, temos de ouvir muito o Papa Francisco, aquela frase que ele diz sobre a infraestrutura que nos governa, económica, ele diz ‘esta Economia mata’.
E esta economia pode matar o desporto, também?
Claro, pode matar o desporto, esta economia mata tudo. Nós não temos, no desporto, uma preparação ética igual à preparação que se quer dar… Mesmo isso que se espalha por aí, que correr dá saúde. Só correr não dá saúde, o que dá saúde é o sentido, porque é que eu vivo, as grandes perguntas.
Essa paixão pela corrida parece ter apanhado os portugueses nos últimos anos. Nas grandes cidades crescem as ciclovias, e há cada vez mais gente a andar de bicicleta e a correr…
E fazem bem.
Mas, isso só tem um lado positivo?
Não chega. Para ser feliz, não chega correr, para ser feliz é preciso estar o homem todo, como diz o poema do Fernando Pessoa [Para ser grande, sê inteiro: nada/Teu exagera ou exclui].
Há dois grandes autores, que eu li, muito importantes para conhecer tudo, inclusivamente o desporto: Emmanuel Mounier e o padre Teilhard de Chardin. Dizem que o homem é integralmente corpo quando é integralmente espírito, e é integralmente espírito quando é integralmente corpo. Portanto, a gente não pode separar uma coisa da outra.
Quando defino a motricidade como ‘movimento intencional e solidário da transcendência’, ponho o ‘intencional’. Não é preciso dizer psicomotricidade, porque já o digo.
Na sua reflexão há sempre uma ideia de unidade, que vai em sentido contrário a uma tradição de separação corpo-espírito. De que forma é que isso pode ajudar quem começa numa prática desportiva, percebendo que não basta a dimensão técnica?
Eu até estou convencido de que uma pessoa que tenha o sentido da vida é melhor atleta, está mais confiante. E até a oração, que aliás há muitos jogadores que a fazem. Podemos falar da dimensão religiosa na alta competição, designadamente no futebol. A oração, falarmos com Deus, faz-nos bem, até psicologicamente.
Portanto, também é importante ajudar os portugueses a fazer melhor exercício físico, tendo em conta estas questões?
A saúde não depende só do exercício físico, depende de um exercício físico onde há valores, onde eu sou tão bom do ponto de vista físico, como do ponto de vista moral. Tudo isso tem a ver com o desporto, tudo isso tem a ver com a vida toda.
Essa sua visão influenciou uma geração de treinadores, com a ideia de que não basta só saber de futebol para ser bom treinador. De que forma é que vê o sucesso de pessoas de quem foi próxima, como José Mourinho ou Jorge Jesus?
Todos nós temos defeitos, é por isso que somos seres humanos, não somos perfeitos. Mas, esta geração entra num mundo… Sabe, eu não posso andar num caminho com lama e dizer que não sujo os pés. Aquele mundo é de dinheiro, de ganhar de qualquer maneira, de vitória, tem determinados defeitos.
Se a sociedade é de determinada maneira, o desporto reproduz e multiplica. A gente tem de assumir: se discorda dos valores predominantes na sociedade, tem de fazer uma rutura. A seguir, vem o profetismo: um projeto de sociedade diferente. Eu, cada vez mais, acredito em Deus. Talvez seja da própria velhice.
Hegel tem uma frase de que eu me lembro, às vezes, agora que cheguei a velho: ‘a ave de Minerva’ – ou seja, a ave da sabedoria – ‘só levanta voo ao entardecer’. Eu reparo que é mesmo assim: envelheci e tenho a sensação que sei mais, que sei melhor, que conheço melhor o ambiente que me rodeia.
Os treinadores têm responsabilidade no exemplo que dão aos outros? Quando um treinador, no final de um jogo, não cumprimenta um adversário, isso é um mau exemplo?
Com certeza. O treinador devia ser, simultaneamente, um educador, e muitas vezes não o sabe ser. Muitas vezes sabe que, para agradar a determinados dirigentes, tem que vestir aquele fato de indivíduo que não liga ao adversário. Eu sem o adversário não posso praticar desporto, não é? É imprescindível à minha prática desportiva. O adversário é alguém com quem eu devo competir, evidentemente, mas que devo respeitar.
A questão da violência no futebol é um fenómeno que o preocupa?
Preocupa-me. Se a sociedade é violenta, é evidente que o desporto tem também violência. Agora, atenção: o desporto tem violência, não é violento. É uma coisa completamente diferente.
Fazem-no violento?
Fazem-no violento. Mas acho que esta frase, passe a imodéstia, diz tudo: o desporto não é violento, tem violência.
Outra faceta do seu percurso tem a ver com a sua experiência política, como deputado. Até que ponto é que a atenção mediática sobre os reformados, que se criou com o PSN, o Partido da Solidariedade Nacional, se perdeu na atualidade?
Há uma coisa que eu quero chamar a atenção: eu entrei de forma idealista na política, porque não escolhi os partidos do arco do poder, criei um partido e depois fiz política. Isto quer dizer alguma coisa.
E que foi um fenómeno, na altura…
Foi. Mas depois reparei no seguinte: um deputado na Assembleia da República… é melhor não estar lá, sabe? É que não faz nada. Bom, uma pessoa deixa qualquer coisa, conheci pessoas de muito valor, que se deram comigo, que foram meus amigos. Estou a lembrar-me do doutor Almeida Santos, que foi uma pessoa que sempre me acompanhou, fomos muito amigos. Depois também tive um companheiro de curso, amigo de toda a vida, o José Medeiros Ferreira. Estou a lembrar-me do Raúl Rego, que gostava muito de falar comigo e que me convidou a escrever no ‘República’, antes do 25 de Abril. Portanto, ganhei conhecimento com algumas pessoas…
Mas, sente que há um espaço político para medidas e um olhar específico sobre a terceira idade, que ficou por preencher?
Há mais pessoas que trabalham pelos mais velhos, os mais idosos. Agora, era preciso fazer mais. Mas, isto também é uma sociedade - a gente não pode desligar nada da sociedade, de onde brotam as instituições -, a própria sociedade deita fora o que não presta, deita fora o que está velho. O maior drama, talvez, que encontrei neste país, foram os idosos sós. Encontrei tanta senhora viúva, com os filhos em Paris, na Austrália… Totalmente sós. O que não deve sofrer esta gente.
E esse fenómeno continua, tantos anos depois de ser deputado (1991-1995)…
O deputado pode pouco. Faz o que pode. Eu acho que também tem de haver mais respeito pela Assembleia da República. O deputado é um mal-amado e ele não tem assim tanto poder como se julga.