“[Caso de Bashir] não representa a população afegã. Devemos integrar e não isolar”
29-03-2023 - 11:43
 • João Carlos Malta

O alerta para os riscos da reação à tragédia no Centro Ismaili é dado pela coordenadora de saúde mental do Serviço Jesuíta para os Refugiados. Carateriza a população migrante como mais vulnerável a situações de depressão, luto crónico e stress pós-traumático.

Vivem situações traumáticas de perda relacionada com a guerra. Fazem viagens em que os limites humanos são testados ao máximo. Por isso, os migrantes que chegam à Europa têm uma maior suscetibilidade de poder desenvolver patologias psicológicas. Mas isso justifica, por si só, o ataque trágico que acabou com a morte de duas mulheres no Centro Ismaili, em Lisboa? “Não”.

A resposta é dada pela coordenadora do serviço de saúde mental do Serviço Jesuíta para os Refugiados, Rosário Suarez, uma argentina que desde 2016 já prestou apoio a milhares de refugiados naquele centro.

Rosário diz que os casos mais frequentes nesta população estão ligados “a sintomatologia depressiva, ansiosa, stress pós-traumático e luto crónico”.

A psicóloga liga-o à vulnerabilidade destes utentes, ao que lhes aconteceu, no fundo “à história de vida destas pessoas”, que pode estar ligada ou não ao facto de serem refugiadas e a tudo o que aconteceu no percurso migratório. Sem diagnósticos definitivos, diz que pode ser um fator extra de risco.

A especialista refere que não conhece o caso de Abdul Bashir, o afegão de 29 anos que matou duas mulheres no Centro Ismaili em Lisboa. Este homem perdeu a mulher na Grécia, durante um incêndio, e afirmou ter dificuldade em encontrar um emprego por ter três filhos menores a seu cargo. Além disso, o representante da comunidade afegã em Portugal afirmou que este estaria a ser ameaçado pelos talibãs em relação à família que ficou no Afeganistão.

Rosário ainda assim defende que não se pode dizer, com os dados que existem, que a tragédia tenha explicação por questões relacionadas com a saúde mental.

Há relatos de que Bashir tinha sido acompanhado por psicólogos quando chegou a Portugal, mas que teria abandonado os tratamentos. Rosário não garante também que tenha sido isso a espoletar o que aconteceu.

“Não podemos ligar um facto a outro, temos de ser sérios na questão da saúde mental. Não podemos dizer que foi por isto que aconteceu. Temos apenas alguns dados isolados. Não gostaria de ligar uma coisa a outra”, começa por dizer.

Diz que o problema de acesso a serviços de psicologia abrange toda a população e que deveriam existir mais meios. “Mas também para a população portuguesa”, alerta.

O facto de Abdul ter desistido dos tratamentos também não é um fator decisivo para Rosário Suarez, uma vez que isso acontece com muitos portugueses e sucede, por muitas razões, nomeadamente a falta de técnicos ou de horários compatíveis.

Apesar de reconhecer que o contexto familiar e pessoal de Bashir era complicado, Rosário diz que qualquer pessoa que fica “sem a mulher e com filhos pequenos vai sentir dificuldades”.

“É possível que esta pessoa tenha uma vulnerabilidade acrescida por ser refugiada e ter uma rede de suporte mais deficiente e tenha precisado de um acompanhamento com outras componentes de autonomização”, relata.

Em relação ao impacto da tragédia na comunidade afegã e em possíveis consequências psicológicas para os afegãos em Portugal, Rosário teme que “as pessoas generalizem esta situação e, ao invés de integrar estes afegãos, os isolem”.

“Isso seria uma pena. Este é um caso isolado e não representa a população”, defende.

A psicóloga pede também humildade à comunidade na forma como olha para o que aconteceu e diz que, neste momento, é impossível dar respostas definitivas. “Não sabemos o que aconteceu a esta pessoa para ter este desfecho. Sabemos pequenas coisas da sua vida, mas não sabemos toda a história para fazer um julgamento. Não temos o poder de o fazer”, resume.

“Há que refletir do lado da empatia e pensar que não sabemos tudo. E pensar no que isto nos traz para podermos aprender e acompanhar estes utentes e não os isolar”, argumenta.

A equipa de saúde mental do Serviço Jesuíta para os Refugiados seguiu 404 pessoas durante o ano de 2022, e conta com dois centros, Porto e Lisboa, que têm uma equipa permanente de sete pessoas, a que se junta uma bolsa de 50 psicólogos.

A todos os refugiados que chegam a Portugal e que são encaminhados para este centro é feita uma avaliação psicológica para perceber se necessitam de acompanhamento específico. Se precisarem, avalia-se a necessidade de seguir um apoio individual ou de grupo.