Há médicos de família em Lisboa a trabalhar menos horas por mais dinheiro
07-06-2018 - 15:40
 • Inês Rocha

Situação ilegal está a ocorrer em Unidades de Saúde Familiar modelo B, cujos médicos já recebem incentivos salariais por aumento de lista de utentes. O resultado? Listas de espera maiores e mais injustiça dentro da classe.

Há médicos de família nas Unidades de Saúde Familiar (USF) modelo B da região de Lisboa e Vale do Tejo que estão a cumprir menos horas de trabalho do que deviam, tendo em conta os incentivos salariais que recebem face ao aumento da lista de utentes.

A denúncia é feita por António Alvim, fundador da primeira Unidade de Saúde Familiar em Lisboa – a USF Rodrigues Miguéis, em Benfica – que trabalha também em modelo B. Estas unidades de saúde são formadas por médicos, enfermeiros, administrativos e outros profissionais e funcionam de forma autónoma, definindo as suas próprias regras.

A diferenciação entre os vários modelos (A, B e C) é resultante do grau de autonomia. As unidades em modelo B são mais autónomas e têm mais incentivos financeiros que as de modelo A. Em troca, têm de cumprir objetivos mais ambiciosos (com um nível mais avançado de organização).

À Renascença, o médico afirma que os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) da região de Lisboa e Vale do Tejo têm aprovado horários de 35 horas a médicos de família que, por já terem suplementos retributivos dado o aumento de lista de utentes, deveriam cumprir pelo menos 40 horas de trabalho semanais.

Na prática, há médicos de USF modelo B que estão a receber o dobro dos colegas em modelo A e a trabalhar menos horas. Isto, explica, está a acontecer por complacência da Administração Regional De Saúde de Lisboa e Vale do Tejo.

“No nosso regime, o horário base é de 35 horas, o que corresponde a uma lista média de 1550 utentes (1917 unidades ponderadas). Mas como toda a gente aumentou a lista para cerca de 1900 utentes, isso daria mais nove horas de trabalho, que o Estado paga. O raciocínio foi: para verem mais doentes precisam de mais tempo, portanto vamos pagar mais”, explica António Alvim.

O valor das seis primeiras horas extra é multiplicado por 1.8 - um incentivo para os médicos aumentarem a lista e assim atenderem mais utentes. Contas feitas, os médicos de família destas unidades podem receber até 1794 euros mensais pelo aumento das listas - supostamente com equivalente aumento do número de horas de trabalho.

No entanto, os horários de apenas 35 horas têm sido aprovados em “quase todas as USF modelo B da região”, denuncia António Alvim. “É assim que os ACES atuam, por indicação da ARS”, explica o médico.

Os números são difíceis de apurar, uma vez que a ARS LVT recusa divulgá-los, dizendo apenas estar a cumprir a lei. A administração recusou ainda os pedidos de entrevista com responsáveis dos ACES da região.

Apesar disso, a Renascença apurou que, no ACES responsável pela USF onde António Alvim trabalha, o de Lisboa Norte, há cinco USF modelo B, onde trabalham 37 médicos. Desses, 31 médicos têm listas superiores a 2358 unidades ponderadas, o que significa que recebem incentivos por aumento de lista. Mas desses 31, apenas três médicos (incluindo António Alvim) estão a cumprir horários superiores a 35 horas, adaptando-os ao incremento na lista de utentes.

A situação já dura há 10 anos, garante o médico. No entanto, em 2017 a lei foi clarificada e passou a ser explícita neste campo, afirmando que “nas USF modelo B, o horário de trabalho deve ter como base as 35 horas, com incrementos ajustados às UC (unidades contratualizadas) do suplemento associado às unidades ponderadas da lista de utentes”.

Isto quer dizer que o horário base deve ser ajustado aos incrementos que cada médico tem na sua lista de utentes, com respetiva compensação salarial. O que antes poderia ser uma questão de interpretação é, desde há um ano, uma violação da lei.

João Rodrigues, presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar, diz ser “evidente” que o aumento da lista tem de corresponder ao aumento de tempo. E isso tem de ser definido em cada unidade de saúde. “Felizmente é isso que acontece na maior parte delas”, garante.

O dirigente daquele organismo diz não ter conhecimento de unidades a não cumprir a lei, mas ressalva que se isso está a acontecer, como denuncia António Alvim, “a ARS deve intervir”.

“Quem está em incumprimento deve ser identificado, porque a lei é clara a esse respeito”, afirma o presidente da USF-AN.

A Renascença contactou a ARS de Lisboa e Vale do Tejo, que recusou o pedido de entrevista e enviou apenas uma nota, dizendo que “cumpre com rigor a legislação que diz respeito ao funcionamento das USF modelo B”, um regime que “não é regional, abrange todo o país”.

A ARS LVT afirma ainda que a legislação reconhece às USF modelo B “autonomia de gestão como um dos seus princípios, a qual assenta na auto-organização funcional e técnica, visando o cumprimento do plano de ação”.

Apesar de questionada pela Renascença, a organização não confirmou se tem aprovado horários de 35 horas a médicos com incrementos de lista de utentes nem respondeu quantos serão os médicos nesta situação, afirmando apenas que “os horários dos médicos que estão a ser praticados estão conforme as regras legais aplicáveis”.

António Alvim garante já ter alertado a ARS várias vezes, sem nunca obter resposta. A própria diretora do ACES Lisboa Norte, Manuela Peleteiro, terá concordado com os argumentos do médico e alertado o diretor da Administração Regional de Saúde para o problema, que não fez nada para corrigir o erro.

Desigualdade entre médicos

Para António Alvim, esta é uma situação de injustiça não só para os médicos a trabalhar em modelo B noutras regiões, mas também para os profissionais que trabalham nos centros de saúde tradicionais e nas USF modelo A, que recebem cerca de metade do ordenado e trabalham mais horas para atender o mesmo número de utentes.

É que, para além do incentivo financeiro relacionado com o tempo de trabalho, os médicos das USF modelo B recebem ainda outros incentivos, como a retribuição sensível ao desempenho. E as diferenças são abissais.

Por exemplo, um médico assistente com contrato num centro de saúde tradicional ou numa USF modelo A, em regime de 40 horas semanais e uma lista de 1900 utentes, recebe entre 2.746,24 e 3.158,18 euros brutos de vencimento mensal.

Já se estiver integrado numa USF modelo B, também com uma lista com 1900 utentes, pode trabalhar apenas 35 horas semanais, no caso de Lisboa e Vale do Tejo, e o vencimento mensal bruto, de 2.574,94 a 3.111,39, com regime de exclusividade (que não obriga a uma exclusividade efetiva) pode subir para 7217 euros brutos. Isto porque além do ordenado base, estes médicos recebem complementos salariais pelo aumento de lista e também por desempenho. O bom seguimento de diabéticos e hipertensos e as consultas de saúde materna e infantil são também convertidos em unidades e cada 55 Unidades correspondem a mais uma hora (ou unidade contratual). Os domicílios também são pagos quem os faz, a 30 euros cada, com um limite de 20 por mês.

“Quem passa para modelo B pode ficar a ganhar o dobro e pode reduzir o seu horário. Isto não faz sentido”, atira António Alvim. “É inconcebível que haja médicos nas USF neste regime, com o máximo de utentes, a ter três tardes livres. Não faz sentido.”

António Alvim diz estar sozinho na crítica à aprovação de horários de 35 horas para médicos que recebem incentivos salariais por aumento de lista de doentes.

À sua volta, vê colegas acomodados à situação. “Quando a entidade que paga, a própria administração, diz que está bem assim, as pessoas adaptam-se. Não culpo os meus colegas por isso.”

Apesar disso, não consegue deixar de denunciar a situação. “Eu é que sou um fora da caixa, que todos os anos faço uma declaração de voto a dizer que sou contra aqueles horários. Hoje já toda a gente sabe o que eu penso.”

O médico também recebe os incentivos a que tem direito por trabalhar numa USF modelo B, mas cumpre pelo menos 40 horas semanais.

“Eu faço 35 horas assistenciais - o resto são reuniões, etc.; os meus colegas só fazem 30 horas assistenciais. Essa diferença é fundamental porque cinco horas correspondem a 20 doentes por semana, a 80 doentes por mês. Ao fim de 3 meses, são 250 consultas”, explica.

António Alvim diz que, ao contrário dos colegas, consegue ter sempre as consultas em dia, sem grandes tempos de espera. Os utentes atribuídos a colegas com horários mais curtos têm sempre períodos de espera de duas a três semanas, enquanto António consegue dar resposta aos doentes em apenas cinco dias úteis. “É matemático. Ou se consegue dar resposta numa semana ou o que sobra vai sempre acumulando”.

Na prática, isto significa que também os utentes das USF modelo B estão a ser prejudicados pela situação. “Nada disto faz sentido”, sublinha.

USF de modelo A “andam atrás da cenoura e nunca lá chegam”

A reforma dos cuidados de saúde primários foi iniciada em 2006, com a criação das primeiras USF – unidades de prestação de cuidados de saúde formadas por médicos, enfermeiros, administrativos e outros profissionais que funcionam de forma autónoma, definindo as suas próprias regras.

Estas unidades começam por funcionar em modelo A e devem evoluir no sentido de chegar a modelo B, uma forma mais evoluída de organização, com equipas com maior amadurecimento e mais incentivos financeiros.

Em janeiro deste ano, um estudo da coordenação nacional para a reforma do Serviço Nacional de Saúde (SNS) mostrou que o SNS pouparia mais de 100 milhões de euros num ano se todos os centros de saúde tradicionais fossem transformados em unidades de saúde familiar de modelo B.

No entanto, em 2017 não houve quotas para a criação de USF de modelo B; e este ano, apenas 20 unidades vão passar a modelo B, embora já haja pelo menos 66 candidaturas.

António Alvim considera que, para o Estado, o modelo B, com os incentivos financeiros que tem, “acabou”. “Politicamente não se pode dizer que acaba, mas na prática é isso que o Governo tem estado a fazer”, garante. Esta “marcha atrás” vem dos encargos financeiros que este modelo acarreta.

“As USF modelo A que trabalharam para ser modelo B estão em desigualdade”, afirma o médico. “Estão a correr atrás da cenoura, trabalham tão bem ou melhor do que as que estão em modelo B, porque têm de provar que são capazes de passar para o novo modelo, e têm o acesso cortado. E ganham metade para fazer exatamente o mesmo”.

O médico considera que a criação de USF modelo B – um modelo “generoso” para os profissionais - foi muito importante para a reforma dos cuidados primários, já que trouxe poupanças ao SNS e ajudou a melhorar os cuidados. Considera que “haver objetivos a cumprir é muito bom”, mas ressalva que “autonomia não pode ser libertinagem”. “É um bom modelo, mas tem de ser cumprido da parte dos médicos”, afirma.

Além disso, António Alvim considera que este modelo deve ter regras mais apertadas. “Não faz sentido que a uma unidade de modelo clássico ou A, que ganha metade, se exija que os doentes sejam atendidos em três semanas e que a nós nos exijam o mesmo, pagando o dobro.”

O médico considera que estas unidades devem oferecer consultas em apenas cinco dias úteis. “É preciso que os médicos adaptem a sua carga horária às horas que são pagas para o número de doentes que têm. Se fizerem isto, é facilmente possível ter consultas em cinco dias”, garante.

Notícia atualizada a 9 de junho, às 10:45, com correção de valores dos salários brutos dos médicos