Respeito
04-11-2021 - 06:10

A eutanásia é um fenómeno complexo, que suscita graves questões de ordem ética, jurídica, psicológica, social e, até mesmo, económica... Enquanto alguns têm-na como um dos mais graves atentados contra a vida, outros veem nela a expressão última da liberdade.

A 18 de janeiro de 2019, num artigo intitulado “Death on demand: has euthanasia gone too far?” (algo como ‘Morte a pedido: terá a eutanásia ido longe demais?’), o insuspeito The Guardian fazia reportagem sobre a crescente preocupação dos médicos na ‘capital da eutanásia’ (Amesterdão) com a facilitação da possibilidade de cada um escolher o tempo e o modo da sua morte. No site da Levenseindekliniek (Clínica do Fim de Vida) mencionada no artigo, somos alertados para o facto de que o tempo de espera está a aumentar: em julho passado, a Clínica recebeu 363 inscrições. “Nunca tivemos tantos registos num mês”, diz a diretora, Sonja Kersten. “Para efeito de comparação: em abril passado tivemos 266 inscrições, cem a menos do que agora”.

A eutanásia é um fenómeno complexo, que suscita graves questões de ordem ética, jurídica, psicológica, social e, até mesmo, económica... Enquanto alguns têm-na como um dos mais graves atentados contra a vida, outros veem nela a expressão última da liberdade e da auto-determinação pessoal, preconizando que para acabar com o sofrimento se elimine a pessoa que sofre.

Num arroubo complexado de modernidade, pretende-se agora que Portugal, juntando-se a um punhado de early adopters – os pioneiros, Países Baixos e Bélgica, depois seguidos do Luxemburgo, Colômbia e Canadá e, já este ano, pela Espanha e a Nova Zelândia – enverede por um processo de experimentalismo social de resultados, no mínimo, imprevisíveis e, muito provavelmente, desastrosos. Basta observarmos o que se passa especialmente na Bélgica e nos Países Baixos, com inúmeros abusos reportados e um número de casos de eutanásia que só tem aumentado, de ano para ano, tendo quintuplicado na Bélgica desde a legalização da prática, em 2002, para cá. Neste países, cada vez mais se morre de eutanásia e não de morte natural. Na Bélgica, tornou-se recorrente o debate sobre a despenalização no caso de pessoas, nomeadamente idosos, que, sem padecerem de qualquer doença, solicitem a eutanásia por sentirem que a sua vida está completa e já não faz sentido. Mais um desenvolvimento expectável de uma conceção, subjacente à liberalização da eutanásia, que toma a autonomia por tendencialmente absoluta. Nos Países Baixos a eutanásia foi recentemente estendida aos recém-nascidos, o que pode ser entendido, de certa forma, como a descriminalização do infanticídio. Não será exagerado pois afirmar que, nestes países, o processo encontra-se fora de controlo...

Também por isso aumenta a desaprovação generalizada desta prática. Pelo mundo fora, repetem-se os casos de projetos de despenalização rejeitados. A nível europeu, enquanto no Tribunal dos Direitos do Homem o dito direito a morrer ‘dignamente’ não tem logrado qualquer acolhimento, no Parlamento, há tempos, uma declaração a favor da eutanásia não recebeu o apoio de mais de 15% dos deputados. Não havendo qualquer indicação médica para a eutanásia – esta simplesmente não se enquadra na prática da medicina, antes subverte gravemente a relação médico-paciente, comprometendo a confiança que é a base dessa relação – não espanta assim a oposição consistentemente mantida pela American Medical Association à sua legalização, e a sua condenação também pela Associação Médica Mundial. Esta é a posição também em Portugal da Ordem dos Médicos, ou do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.

Por tudo isto, devia esta matéria ser discutida serenamente e, numa sociedade pluralista e moderna, justificava-se aqui, sobremaneira, acionar o mecanismo da democracia referendária. Em Portugal, nada disto foi feito. Nesta, como noutras causas ditas ‘fraturantes’, a esquerda tem revelado um medo consistente do debate, e um enorme receio de auscultar o povo.

Aprovada a eutanásia a 29 de janeiro deste ano na Assembleia da República, o Presidente da República enviou o documento a 18 de fevereiro ao Tribunal Constitucional. Para surpresa de um grande número dos que o elegeram, porém, o Presidente da República deteve-se naquilo que para a maioria dos portugueses é uma minudência técnico-jurídica: estando em causa a inviolabilidade da vida humana, o Presidente da República levantou somente a questão da fraca densificação dos conceitos utilizados no texto aprovado pela Assembleia da República. Não deixou, contudo, o Tribunal Constitucional, em acórdão de 15 de março, de apreciar a questão à luz do direito à vida, só para concluir que este não constitui um obstáculo intransponível à aprovação da eutanásia.

Retornando o documento ao Parlamento, ficou na prateleira mais de sete meses. Até ao dia em que se anunciou, na semana passada, o cenário da dissolução da Assembleia da República, na sequência da rejeição do Orçamento de Estado para 2022.

A votação está marcada para a próxima quinta-feira. Para surpresa de um grande número dos que o elegeram, ficou a saber-se que o Presidente da República não levantou qualquer objeção a esta agenda.

Deverá assim ser aprovada a eutanásia à 25ª hora, de afogadilho, como último e vexatório legado da era da geringonça costista em Portugal, inaugurada, não esqueçamos nunca, quando o genial taticista líder do PS, de forma inédita na nossa democracia, não hesitou em aliar-se à extrema esquerda parlamentar só para impedir que os lídimos vencedores das eleições de 2015 governassem o País.

A forma como se desenrolou todo este processo até à sua aprovação final, porém, só reforça a legitimidade de que uma outra maioria parlamentar que venha eventualmente a resultar das novas eleições que se avizinham, proceda à revogação da despenalização da eutanásia, impedindo que esta se consolide no nosso ordenamento jurídico.

Mas não se conseguirá limpar a mancha: os portugueses mereciam mais respeito!



* Jurista e antigo membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV)