Tolkien e Judite: uma visão cristã da violência
21-05-2021 - 06:45


Com banda-sonora de Thomas Newman, o filme “Tolkien” (2019) mostra-nos a relação entre a biografia do católico JRR Tolkien e a sua criação, a grande saga “O Senhor dos Anéis”. Estou a pensar sobretudo na relação entre a I Guerra Mundial e o retrato medonho que a saga faz da guerra. A partir de Tolkien, não é possível romantizar ou estetizar a guerra: uma batalha é imunda, suja, horrível, escura, destrói em segundos corpos e mentes. Esta visão, infelizmente, nem sempre é óbvia, nem sempre triunfa. Quantas guerras não foram comemoradas no seu alvor? Os jovens americanos comemoraram o início da guerra da secessão em 1861. E, como mostra este filme, os jovens colegas de Tolkien celebraram no pátio de Oxford o início da guerra com a Alemanha em 1914.

JRR Tolkien combateu nas trincheiras e foi claro no que escreveu: a guerra é a negação da humanidade; no máximo, a guerra só pode ser vista como um mal necessário perante uma ameaça. É esta a visão católica ou cristã, o oposto da visão nacionalista e romântica de um Ernst Jünger, por exemplo. Este clássico do vitalismo belicista combateu nas trincheiras e tirou a conclusão oposta: a guerra, dizia, era bela, era a consumação máxima do ser humano enquanto moral e enquanto estética; a guerra não era destruição, era criação. Na II Guerra Mundial, estas duas visões da guerra estiveram em choque e a de Tolkien acabou por vencer. A vitória pertenceu àqueles que não se definiam pelo amor à guerra.

Este choque entre a guerra vista por um católico (um mal menor quando necessário) e a guerra vista pelo paganismo nacionalista e romântico (a guerra é bela) fez-me lembrar dois quadros que retratam uma cena bíblica: a decapitação de Holofernes por Judite. No quadro de Artemisia Gentileschi, Judite mostra um certo prazer sádico. Mata o inimigo com prazer. No quadro de Caravaggio, ao invés, Judite está a matar Holofernes com um rosto triste. Ela mata-o, sim, porque ele é o inimigo; mata-o porque é o seu dever, porque ele é o mal absoluto, mas esta decapitação não deixa de ser um mal. Judite não tem aqui prazer; pelo contrário, pode-se dizer que está a chorar. Ela sabe que está a perder parte da sua humanidade quando mata o inimigo. A visão cristã da guerra, a visão de Tolkien, é esta. É uma visão trágica entre um pacifismo amoral e inerte que recusa sujar as mãos e um belicismo imoral que só sabe ter as mãos sujas de sangue.