Ordem dos Advogados: Requisição de casas privadas do Zmar viola a Constituição
03-05-2021 - 18:13
 • Lusa

Bastonário invoca artigo da Lei Fundamental para argumentar que a requisição civil do complexo não pode abranger as casas privadas.

A Ordem dos Advogados defendeu hoje que a requisição temporária do complexo turístico Zmar, em Odemira, para alojar trabalhadores agrícolas devido à covid-19, não pode abranger casas privadas, sob pena de violar a Constituição.

Após visitar o empreendimento turístico, o bastonário da Ordem dos Advogados (OA), Luís Menezes Leitão, invocou o artigo 34, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) para argumentar que a requisição civil do complexo não pode abranger as casas privadas aí existentes.

"O artigo 34, n.º 2 da Constituição diz expressamente que ninguém entra no domicílio de outra pessoa sem uma ordem judicial e, precisamente por isso, espero que a Constituição seja respeitada", alertou.

Segundo Menezes Leitão, a requisição civil decretada pelo Governo ao Zmar Eco Experience, na freguesia de Longueira-Almograve, com 260 habitações, das quais cerca de 100 são do complexo e as outras 160 são particulares, "chegaria se não estivesse em causa o domicílio privado de pessoas".

"A Constituição protege o domicílio, seja ele qual for", argumentou, reafirmando: "O que nós temos é um despacho do Governo. Não temos nenhuma ordem judicial".

Depois de conversas com diversos proprietários de casas no empreendimento, o bastonário da OA disse compreender "a situação dramática" dos trabalhadores agrícolas, sobretudo migrantes, de Odemira, concelho onde duas freguesias estão sob cerca sanitária, devido à elevada incidência de casos de covid-19.

Contudo, para Luís Menezes Leitão, a falta de condições de habitação para estes trabalhadores "tem origem numa resolução do Conselho de Ministros de outubro de 2019, que permitiu 16 pessoas por unidade de alojamento, quatro por quarto e umas área de 3,4 metros quadrados" para os migrantes.

"A resolução do problema deles é imperiosa", mas "não deve passar pela ocupação de domicílios privados, porque a inviolabilidade do domicílio é uma garantia constitucional", insistiu.

Para justificar a sua posição, o bastonário disse ainda que também "a nível de direitos humanos" é preciso não haver violações, aludindo ao "artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos do Homem" e ao "artigo 8.º da Convenção Europeia".

Lembrando que o estado de emergência já não está em vigor, Menezes Leitão considerou que o Governo, ao decretar a requisição do Zmar, provocou "uma mistura de situações bastante diferentes", porque "uma coisa é a requisição de empreendimentos turísticos" ou "comerciais" e outra "é a de habitações privadas", sejam elas de primeira ou de segunda habitação.

"O caso de primeira habitação ainda mais grave, porque a pessoa é colocada na rua precisamente neste quadro de pandemia. Mas, mesmo sendo de segunda, é um caso de violação da intimidade da vida privada" e, a partir do momento em que acabou o estado de emergência, "não podem mais ser suspensos os direitos fundamentais das pessoas", assinalou.

Já no que toca ao núcleo de casas pertencente ao complexo turístico, Luís Menezes Leitão disse não colocar "o mesmo problema" relativo às habitações privadas.

No sábado, a OA anunciou ter solicitado a intervenção da sua Comissão de Direitos Humanos para analisar esta questão da requisição do Zmar e, questionado hoje pela agência Lusa, o bastonário destacou que o mesmo organismo vai debruçar-se sobre a falta de condições de habitação para os trabalhadores rurais do concelho, como é o caso da sobrelotação.

"Também vai ser objeto da Comissão de Direitos Humanos", que "quer vir" a Odemira, na quarta-feira, "tratar com associações a possibilidade de arranjar alojamento condigno para os trabalhadores", revelou.

"E é isso que nos parece também muito importante, porque os trabalhadores não podem estar numa situação destas, durante a pandemia. É absolutamente essencial que asseguremos simultaneamente a habitação aos trabalhadores, mas isso não passa pela entrada em domicílios privados. Temos que garantir os direitos fundamentais de todos", defendeu.

No diploma sobre o "reconhecimento antecipado da necessidade de declarar a situação de calamidade no município de Odemira", publicado em Diário da República, é decretada "a requisição temporária, por motivos de urgência e de interesse público e nacional, da totalidade dos imóveis e dos direitos a eles inerentes que compõem o empreendimento "ZMar Eco Experience", localizado na freguesia de Longueira-Almograve".

O espaço ficará alocado à realização do "confinamento obrigatório e do isolamento profilático por pessoa a quem o mesmo tenha sido determinado", lê-se no diploma.

Relativamente à "requisição temporária, por motivos de urgência e de interesse público e nacional, da totalidade dos imóveis e dos direitos a eles inerentes" do empreendimento "ZMar Eco Experience", é estabelecido que a requisição "é válida enquanto a declaração da situação de calamidade for aplicável ao concelho de Odemira", sendo a operação da competência do município de Odemira, como "o apoio da autoridade de saúde e do responsável da segurança social territorialmente competentes".