Portugal (felizmente) continua único
25-04-2020 - 23:09
 • Ánxel Vence*

Tão diferentes são os portugueses que, recém-saídos de uma brutal crise económica, têm sabido combater com extraordinária – quero dizer, rara – eficácia o mesmo vírus que faz sangrar Espanha.

“Meus Senhores”, disse o capitão nesse tempo incerto que precede o amanhecer. “Como vocês sabem, há Estados sociais, Estados corporativos, Estados democráticos e, finalmente, o estado a que chegamos. Nesta noite solene vamos acabar com o estado a que chegamos. De maneira que, os que querem vir comigo, dão um passo em frente e vamos a Lisboa dar um fim nisto”.

Assim começou, com cortesia e humor tipicamente britânicos, o golpe militar – sem derramamento de sangue – que faz hoje 46 anos e que devolveu aos portugueses a liberdade e o direito de escolher os governantes que fossem mais do seu gosto. Horas depois da patriótica arenga seguida, sem hesitação alguma, pelos 240 soldados da sua companhia, o capitão Salgueiro Maia tomava Lisboa como num sonho para devolver a capital aos lisboetas e ao mundo civilizado em geral.

Não é habitual que os militares assaltem o poder para derrubar uma ditadura em vez de a instaurar; mas sabe-se que Portugal é, também neste sentido, um país fora do comum.

Ali, do outro lado do Minho, falam baixinho, têm horários europeus e competem vantajosamente com os galegos no cultivo da nostalgia e do “sentidiño”. Não é assim de estranhar o harmonioso convívio em Lisboa de um conservador levemente monárquico na presidência da República e um socialista, apoiado pelos partidos à sua esquerda, na chefia do Governo. Parte se explicará por essa fleuma portuguesa – não tão conhecida como a britânica – e o elevado nível de formação e experiência de quase todos os seus políticos que em Portugal são habitualmente uma elite de doutorados em universidades de todo o mundo.

Tão diferentes são os portugueses que, recém-saídos de uma brutal crise económica, têm sabido combater com extraordinária – quero dizer, rara – eficácia o mesmo vírus que faz sangrar Espanha.

É uma estranha maravilha comparável àqueles capitães do ramo poético de Walt Whitman que, há 46 anos, tiveram a coragem de antecipar a primavera e fazer crescer cravos na boca de espingardas. Gente jovem, valente e generosa que logo voltou sem fazer ruído aos seus quartéis ou à vida civil, os “rapazes dos tanques”, soldados da democracia que ofereceram aos portugueses.

Meio século vai cumprir já o obséquio: e aí continua, tão resplandecente. Oh capitão, meu capitão.


* jornalista e escritor galego