Vive em Portugal há 36 anos, mas Moçambique está-lhe na massa do sangue. Selma Uamusse olha de forma crítica para o que está a acontecer no seu país de origem.
Em entrevista à Renascença, na véspera do concerto em que lhe foi dada “Carta Branca” para subir ao palco do Centro Cultural de Belém (CCB), a artista lamenta que em Moçambique ainda haja “um pensamento colonial enraizado”.
“Existe uma mentalidade colonial daqueles que estão no poder e que têm poder e que não conseguem largar esse poder. Há uma herança que ficou ainda naqueles que, neste momento, estão no Governo”, aponta a cantora.
Perante a contestação que tomou conta das ruas, depois das eleições de 9 de outubro, Selma Uamusse mostra-se preocupada com a violência, mas acha que há outros sinais que devem ser valorizados.
“Apesar de em Moçambique nós não termos primavera, só termos verão e inverno, esta pode ser a nossa primavera”, afirma. O que está a acontecer deixa-a “muito feliz” ao “ver as pessoas a serem muito críticas, a quererem reivindicar os seus direitos, a não se subjugarem àquilo que tem sido uma forma muito autoritária de governar”.
A viver em Portugal desde os sete anos de idade, Selma Uamusse lamenta, contudo, que a vaga de violência tenha já feito vítimas, não só nas manifestações, mas também com a morte de dois apoiantes do candidato presidencial Venâncio Mondlane.
“Todas as vítimas destas manifestações não vejo com alegria, mas vejo com muita ousadia, e com muita coragem, a postura de muitas pessoas que estão a bater a mão na mesa e a dizer que Moçambique merece mais, e merece melhor”, afirma.
“Uma espécie de 'guetização' de quem é afrodescendente"
Questionada pela Renascença sobre outra vaga de violência, aquela que assolou os bairros de Lisboa na sequência da morte de Odair Moniz, Selma Uamusse diz tratar-se de um “problema socioeconómico das pessoas viverem guetizadas”.
Selma Uamusse considera que há “uma espécie de 'guetização' de quem é afrodescendente, ainda que essas pessoas sejam portuguesas”, diz a artista, que aponta que “não são vistos como os ditos portugueses de bem ou portugueses caucasianos”.
A cantora elenca ainda outro problema que passa pela “falta de integração” que, na sua opinião, “não cria as mesmas oportunidades de educação” para quem vive em bairros periféricos.
“Uma coisa é as pessoas irem à escola, outra coisa é elas terem a educação e terem uma formação igual. Uma coisa é algumas pessoas conseguirem ultrapassar determinados preconceitos e conseguirem entrar em contextos mais privilegiados. Serão sempre poucas as pessoas que conseguem estar em televisões públicas, em lugares de visibilidade em que são respeitadas”, afirma.
Selma Uamusse lembra, contudo, que “as pessoas que vêm do bairro não são todas criminosas, da mesma forma que os polícias também não são todos maus”.
Um palco do CCB por um futuro melhor
A 1 de novembro, Selma Uamusse vai subir ao palco do Grande Auditório do CCB com uma “Carta Branca”. “É uma oportunidade para fazer um concerto bastante diferente daquilo que é um concerto meu”, explica a artista à Renascença.
“O ponto de partida é o meu repertório, são as minhas canções, mas contar uma história que começa no passado e que aponta para o futuro”, diz Selma Uamusse, que irá atuar com a Orquestra Geração e que contará com uma série de artistas convidados, entre eles a Garota Não.
No palco vão também estar Nástio Mosquito, Edvania Moreno, Jacqueline Monteiro, Lívia Mendes, Mariana Santos, Bárbara Wahnon, Nayr Faquirá, Ola Mekelburgh, e Yeni e Yeri Varela.
“Felizmente, tenho muitos amigos na música, o que me fez sentido é, já que estava a pensar num futuro, foi convidar vozes que apontassem para o futuro. São músicos muito mais novos do que eu e que estão neste momento a dar cartas nas suas várias áreas”, explica Selma Uamusse.
Segundo as suas palavras, a música tem “sempre um papel de reconciliação e de esperança”. “Historicamente, o 25 de Abril não teria acontecido se não fossem também todos os movimentos de libertação dos países africanos. E por isso a sociedade portuguesa é constituída por muitos afrodescendentes. Então, convoco não apenas os portugueses, mas também esses afrodescendentes a fazerem parte”.
Selma Uamusse chega a falar numa “ocupação” do palco do CCB para este concerto marcado para as 20h00. “Essa ocupação de um auditório, com alguma pompa e circunstância por esta camada mais jovem afrodescendente acaba também por ser, não uma reivindicação, mas uma ocupação que sequer coesa e indicadora de um futuro com oportunidades iguais para todos”, remata.
“A música tem sempre esse poder de nos fazer sentirmos mais iguais e há sempre um respeito muito grande por quem está em palco, mas depois normalmente há uma dissociação. Eu gostava que neste concerto nós conseguíssemos criar esta reflexão sobre o lugar que todos nós podemos e devemos ocupar de maior respeito mútuo e de elevação”, conclui a cantora lusófona.