As democracias iliberais no Leste europeu
19-10-2019 - 09:20

Vários países que viviam na órbita soviética, depois do colapso do comunismo não se tornaram democracias liberais. Mas, a prazo, poderão evoluir.

Desde há alguns anos, fala-se muito em “democracias iliberais”. Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, proclama orgulhosamente que o seu país tem um regime democrático “iliberal”.

De que se trata? Antes de mais, convém lembrar que a palavra “democracia” foi utilizada, indevidamente, para classificar partidos e regimes muito pouco democráticos.

As ditaduras comunistas soviéticas auto intitulavam-se “democracias populares”. E a ditadura de Salazar classificava-se como “democracia orgânica e corporativa”. O prestígio da palavra, que significa “governo pelo povo”, levou a estas incongruências.

A democracia liberal é representativa, não direta. E visa evitar que as liberdades individuais e coletivas das minorias sejam esmagadas pelas maiorias.

Pelo contrário, nas “democracias iliberais” os que ganham eleições sentem-se autorizados pela “vontade popular” a fazerem o que bem entendem, sem se preocuparem com os direitos das minorias.

Assim, submetem o sistema de justiça ao poder governamental, liquidando a independência judicial. E travam a liberdade de expressão comprando e/ou nacionalizando os meios de comunicação social.

As democracias iliberais surgiram em países da antiga órbita soviética, durante um período de transição para o que se esperava vir a ser a democracia representativa liberal que caracteriza os países da Europa ocidental. Ora, essa fase de transição foi marcada por algumas circunstâncias que o otimismo inicial não havia previsto.

Migrações

Timothy Garton Ash, um professor de Oxford que conhece bem a chamada “Europa de Leste”, antes e depois do colapso soviético, apontou algumas dessas circunstâncias num logo artigo publicado pela “New York Review of Books”. É o caso da emigração maciça desses países de Leste para a Europa ocidental, sobretudo após entrarem na União Europeia.

Esta perda de gente, geralmente com razoáveis qualificações, foi seguida, sobretudo a partir de 2015, pelo movimento inverso: o receio da entrada de imigrantes, principalmente de muçulmanos.

Por exemplo, V. Orbán acusou a UE de inundar a cristã Hungria com muçulmanos de pele escura. Por isso, mandou construir uma barreira de arame farpado na fronteira húngara com a Sérvia.

Países como a Hungria e a Polónia, além de outros, recusaram as propostas da Comissão Europeia para receberem refugiados. De facto, não receberam nem um, mas promoveram a multiplicação na sociedade dos medos face aos estrangeiros. Timothy Garton Ash classificou esta reação de “crise ilusória”.

Mas importa não esquecer que países como a Polónia e a Hungria têm um passado histórico atribulado, do qual resulta um sentimento de fraca identidade nacional – algo que a fortíssima identidade nacional portuguesa tem dificuldade em perceber. Tal fator não justifica a hostilidade a receber imigrantes, mas atenua a indignação moral dos europeus ocidentais.

Problemas na transição

Por outro lado, a transição de uma economia coletivista para uma economia de mercado levou a um capitalismo selvagem e à entrada de investidores estrangeiros.

Tal como se passou, em maior escala, na Rússia, na Hungria e na Polónia foram pessoas ligadas ao desacreditado regime soviético quem, muitas vezes, melhor aproveitou as oportunidades de enriquecimento pessoal mais ou menos ilícito proporcionadas pela transição.

As apressadas privatizações permitiram fortunas a muitos nacionais, que rapidamente se adaptaram à nova situação, e permitiram que empresas estrangeiras passassem a dominar setores estratégicos. A reação “iliberal” também tem a ver com isto.

O liberalismo passou a ser mal visto a Leste. E não apenas no plano económico: decerto que polacos e húngaros têm motivos sérios para desconfiarem de sociedades de consumo e da perda de valores que na Europa ocidental e nos EUA hoje se regista.

Aliás, também no Ocidente muita gente está desagradada com o sistema económico e sente que a democracia política necessita de renovação. Só que tal não implica, exceto para políticos como M. Le Pen ou Salvini, a promoção de regimes autocráticos e liberticidas.

Evolução a Leste?

Timothy Garton Ash mostra-se esperançado em reformas na Europa pós-comunista, de algum modo paralelas às reformas que, no Ocidente, são reclamadas para a economia capitalista e para uma democracia política da qual, agora, muita gente se alheia – veja-se a abstenção eleitoral. E o poder dos partidos iliberais que hoje dominam a Polónia e a Hungria não será eterno.

Neste domingo, realizam-se eleições autárquicas na Hungria. Não se prevê que sejam um passeio para o partido de V. Orban, o Fidesz.

A oposição, que tem estado muito dividida, uniu-se em numerosas cidades húngaras, incluindo em Budapeste. E um escândalo sexual (uma orgia num iate, registada em vídeo) afetou a imagem do mais conhecido presidente de câmara húngaro, que pertence ao Fidesz.

Na Polónia o partido no poder há quatro anos, o Pis, ganhou com maioria absoluta as recentes eleições (13 de setembro). Mas perdeu a maioria no Senado. Este partido, que por óbvias razões históricas não gosta de Putin (ao contrário de outros partidos de extrema-direita, como os de M. Le Pen e de Salvini), promoveu uma política inteligente de apoios sociais, que lhe conquistou grande popularidade. Por isso, na Polónia, como na Hungria, os partidos no poder não serão facilmente derrotados.

Mas, na Eslováquia, um país conservador, foi eleita Presidente da República uma política liberal. E, como várias vezes aqui lembrei, a democracia liberal já foi dada como coisa do século XIX, uma relíquia ultrapassada, dando lugar aos totalitarismos “modernos”. Pois após a II guerra mundial regressou em força. Esperemos que a democracia liberal se modernize aprofundando e não limitando as liberdades – e que essa evolução inclua o Leste europeu.

Este conteúdo é feito no âmbito da parceria Renascença/Euranet Plus – Rede Europeia de Rádios. Veja todos os conteúdos Renascença/Euranet Plus