De mangas arregaçadas e voz afinada, numa quarentena indo-portuguesa
26-06-2020 - 06:18
 • Nádia Rebelo*

Na Índia já morreram mais de 15 mil pessoas de Covid-19. O postal de quarentena que a Renascença recebeu hoje chega de Goa onde a pandemia mudou muito as rotinas, mas não conseguiu calar o fado.

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Fazia alguns dias desde que se deu o início do estado de emergência, no final de março, quando comecei a sentir uma ausência de entusiasmo, de aproveitar estas "novas férias surpresa" que tinham recaído sobre nós. Estava a começar a sentir-me sobrecarregada e com medo de uma rotina constante que se vivia todos os dias, e foi nesse exato momento que percebi o quão importante é manter minha mente forte, independentemente da circunstância.

O tempo que vivemos hoje em dia passa cada vez mais rápido, os dias transformam-se em meses e os meses transformam-se em anos e esquecemo-nos de fazer uma pausa e aproveitar os pequenos momentos de riso, felicidade ou até tristeza que passam por nós. É essa tristeza que desperta as nossas emoções, pois não podemos realmente valorizar a alegria ou o amor sem alguma vez ter sentido tristeza, dor ou mágoa. É como a letra de um fado, escrita por um poeta, cujo objetivo é trazer à tona as emoções ocultas do nosso ser enquanto fadistas.

O nosso presente move-se tão rápido que, num piscar de olhos, se torna no passado, e há que aproveitar esse presente pois embora vivamos num mundo digitalmente e tecnologicamente avançado, onde tudo e todos estão a um clique de distância, vivemos e ainda sentimos a solidão, e mais que nunca nos isolamos e desenvolvemos todo o tipo de ansiedades.

Tudo o que posso dizer é que tenho um dia perfeito quando estou sem o meu telefone e sem ver Netflix. É como se tivesse viajado no tempo e estivesse a viver os dias de que meus avós sempre falaram. É claro que todos os dias não são tão felizes quanto os outros e, em alguns dias, eu vou ficar apenas a ver um bocado de Netflix, mas desde que haja um bom equilíbrio nas nossas atividades e algo de que gosto.

Os goeses por aqui também tiveram de se adaptar e por isso começaram a entrega de alimentos em casa, que não é algo tão comum por estes lados, mas durante esta quarentena foi necessário e uma necessidade pode ser vista sempre como uma oportunidade de desenvolver serviços que não são só para ajudar durante este período mas que no futuro irão ser vistos como medidas que melhorem a vida e a saúde dos cidadão de cada país. Os pastéis de nata estão também a tornar-se o assunto da cidade, com mais e mais padeiros tentando cozinhar esta deliciosa sobremesa Portuguesa.

Todas as pessoas estão a fazer uso do seu tempo livre, das suas habilidades e tecnologia para promover alimentos, bens de saúde e até atividades enquanto ganham algum rendimento no conforto de suas casas. Seus esforços e perspetivas positivas são inspiradoras. Os shows online também são bastante populares aqui e creio que no mundo inteiro neste momento. Também fiz alguns e foi ótimo manter contacto com a música e com algumas pessoas que não podemos ver ou que também não me podem ouvir ao vivo. Sinto muita falta de cantar o fado para uma plateia e espero poder voltar a fazê-lo muito em breve. Também sinto falta de ir à igreja todos os domingos, pois sempre foi uma grande parte de mim, mas acabo a passar mais tempo com a família e ouvimos as escrituras online e é incrível!

Este ano, comemorei os meus 24 anos com minha mãe e minha família mais próxima, em casa, e sem dúvida foi um dos aniversários mais especiais que já tive. Fizemos o nosso próprio bolo, dançámos e simplesmente desfrutámos da companhia da família num momento muito pessoal e íntimo porque, além de me comemorar, acho que aniversários são sobre comemorar as nossas mães, o nosso nascimento e toda a vida que já vivemos com as nossas mães e família. É uma celebração das memórias que criámos e as pessoas com quem criámos e partilhamos essas memórias. Estou muito feliz por ter tido esta oportunidade única e rara nos dias de hoje de estar com minha família, 24 horas por dia, sete dias por semana, porque sei que um dia vou olhar para esses dias e ficar feliz por ter passado todo esse tempo com minha família, cozinhado para eles, ouvido as suas histórias do passado e simplesmente apreciando o facto de estarmos juntos e estar lá uns para os outros.

Aprendi a valorizar os meus momentos e a permanecer forte perante adversidades, assim como ter uma mente positiva a tempo inteiro, para que, independentemente do que a vida nos traga, nos mantenhamos fortes e de mangas arregaçadas, prontos para mais uma batalha, pois depois de uma chuva forte sobre o mundo e sobre nós há que aguardar ansiosamente pelo arco-íris. Ele virá, sempre, e sem falta!


*Nádia Rebelo é uma fadista goesa, de 24 anos. Este postal foi escrito em português, tendo sido apenas levemente editado. Pode acompanhar o trabalho da Nádia no seu site oficial.