De milionário a suspeito de burla. Joe Berardo e uma pergunta para mil milhões de euros
29-06-2021 - 18:30
 • Hélio Carvalho

José Berardo, mais conhecido como Joe Berardo, ficará conhecido como um empresário multimilionário, um grande colecionador de arte e, agora, como um homem na mira da justiça. O empresário madeirense, que diz não ter dívidas, criou um buraco de mil milhões de euros na banca. Na memória, fica também a sua sonora gargalhada numa comissão parlamentar de maio de 2019.

Mais de dois anos depois da famosa aparição da comissão parlamentar de inquérito à Caixa Geral de Depósitos (CGD), Joe Berardo foi detido esta terça-feira, juntamente com o seu advogado, André Luiz Gomes.

O empresário madeirense é suspeito de crimes de administração danosa, burla qualificada, fraude fiscal e branqueamento de capitais. A investigação, que culminou com a detenção de Berardo e 151 buscas, durou cinco anos. O grupo económico de Berardo é suspeito de ter lesado três bancos - a CGD, o Novo Banco e o BCP - em quase mil milhões de euros.

A Renascença explica-lhe como é que o mítico empresário, comendador e colecionador de arte acabou nas mãos da Polícia Judiciária e do Ministério Público (MP).

Investigação focada nos créditos da Caixa

Joe Berardo e André Luiz Gomes foram detidos numa investigação que arrancou depois de um inquérito dirigido pelo Ministério Público do Departamento Central de Investigação e Ação Penal.

As autoridades investigaram o Grupo Berardo que, entre 2006 e 2009, recebeu 439 milhões de euros da Caixa Geral de Depósitos (CGD). Mas, diz o MP, o grupo tem incumprido com os contratos e recorrido aos mecanismos de renegociação e reestruturação de dívida para não a amortizar.

Só em 2007, a CGD, com o aval do Banco de Portugal (BdP), concedeu um crédito de 350 milhões de euros ao empresário madeirense, para a compra de ações do BCP. O então governador do banco central Vítor Constâncio foi envolvido na polémica, mas garantiu que não estava na reunião que deu luz verde à operação.

Ora, o crédito acabou por ser um péssimo investimento, já que a desvalorização do BCP acabou por gerar perdas consideráveis para a Caixa. Joe Berardo foi criticado na famosa comissão parlamentar, por ter investido em ações do BCP com fundos públicos - mas mais à frente, veremos essas conclusões.

Segundo o comunicado do MP, foram investigadas "matérias relacionadas com financiamentos concedidos pela CGD e outros factos conexos, suscetíveis de configurar, no seu conjunto e entre outros, a prática de crimes de administração danosa, burla qualificada, fraude fiscal qualificada, branqueamento e, eventualmente, crimes cometidos no exercício de funções públicas.”

Os empréstimos começaram em 2006 e 2007, quando Berardo pediu empréstimos à CGD e ao BCP, dando como garantias as obras de arte no valor entre 316 e 400 milhões de euros.

Berardo nunca pagou a dívida; em vez disso, foi negociada uma penhora em 2008 dos títulos da Associação Coleção Berardo (ACB), a dona oficial da coleção de arte exposta no Centro Cultural de Belém (CCB).

Seguiram-se anos em que Berardo e os bancos andaram numa disputa judicial sobre as garantias das obras de arte e, em 2017, foi conhecido que Berardo devia à CGD 400 milhões de euros, devia ao BCP 400 milhões, e devia ao BES cerca de 200 milhões.

"Claro que não tenho dívidas"

A 10 de maio de 2019, José Berardo compareceu no Parlamento para prestar justificações sobre os créditos concedidos pela Caixa a si e ao seu grupo económico.

A presença de Joe Berardo ficou para a história das comissões parlamentares de inquérito e indignou o país na ressaca dos anos de crise e do resgate da troika.

Nesse dia, Joe Berardo disse que foram os bancos que o tinham abordado para comprar ações do BCP com o seu dinheiro - especialmente da CGD e do então Banco Espírito Santo - e afirmou: "Eu pessoalmente não tenho dívidas. Claro que não tenho dívidas!".

Outra famosa tirada surgiu durante as questões de Duarte Marques, a quem Berardo disse que não tinha qualquer posse. O deputado do PSD questionou o porquê de não ter sido feito uma avaliação à coleção da Fundação Berardo, presente no CCB através de um contrato com o Estado, desde 2009. Berardo apontou que isso custaria "uma pipa de massa".

"O problema é que isto está a custar uma pipa de massa a muita gente", respondeu o deputado do PSD, ao que Joe Berardo replicou: "A mim não".

A gargalhada irónica de Berardo ocorreu depois de Cecília Meireles, deputada do CDS-PP, ter sugerido que, se os bancos executassem os títulos da Associação Coleção Berardo, o empresário deixaria de mandar na associação.

Da direita à esquerda, a prestação de Berardo deixou o país indignado. O primeiro-ministro António Costa disse três dias depois que o país estava "seguramente chocado pelo desplante" do "senhor Berardo". E Marcelo Rebelo de Sousa disse que personalidades condecoradas como o colecionador deviam "ter decoro".

Mais tarde, o próprio empresário madeirense disse que se tinha excedido. "Tenho que admitir que, no calor da discussão, me excedi, dando algumas respostas impulsivas e não devidamente ponderadas".

Condecoração em risco, obras "de vida" arrestadas e o relatório da ruína

As desculpas não foram aceites. O CDS-PP sugeriu que fosse retirada a condecoração da Ordem do Infante D. Henrique a Joe Berardo - além dessa condecoração, dada por Jorge Sampaio em 2004, tinha também sido nomeado comendador por Ramalho Eanes em 1985.

A Visão noticia esta terça-feira que as condecorações a Joe Berardo ainda não foram retiradas porque o processo pelo Conselho das Ordens Nacionais ficou parado devido à pandemia.

Seguiram-se cerca de dois meses de arresto de património e a queda em desgraça de Joe Berardo.

Houve processos contra deputados por Berardo por transmitirem a audição parlamentar, processos contra Berardo pelo Ministério Público e pelo Parlamento por recusa de envio de documentação necessária. Pelo meio, Vítor Constâncio foi ouvido na mesma comissão parlamentar pela Caixa ter falhado em cobrar os 350 milhões de euros concedidos ao colecionador.

A 15 de julho, foi publicado o relatório demolidor da II Comissão Parlamentar de Inquérito à Recapitalização e Gestão da Caixa Geral de Depósitos.

No relatório de 366 páginas, foi formalmente dito que José Berardo mentiu no Parlamento quando disse que tinha sido a Caixa a pedir-lhe que investisse nas ações do BCP. As operações de financiamento às suas aquisições de ações do BCP, entre 2004 e 2008, foram consideradas um "enorme risco sistémico, expondo largamente a CGD à evolução de outro banco, no caso o BCP".

A desvalorização do BCP foi de 95% entre 2000 e 2013 e estima-se que a CGD tenha perdido 600 milhões de euros com as operações.

Em junho de 2019, as casas de Berardo foram arrestadas pelo tribunal da comarca de Lisboa, avaliadas num montante total de quatro milhões de euros. Cerca de um mês depois, foi a vez do espólio da Coleção Berardo no Centro Cultural de Belém, cerca de 2.200 peças de arte, avaliado depois em 1,3 mil milhões de euros.

Naquela comissão parlamentar de inquérito, o colecionador tinha dito que as obras não eram suas, eram da Associação Coleção Berardo, mas vincou: "A arte, para mim, é a minha vida".

Como não ter nada e ter tudo: a teia do património Berardo

José Berardo dirá que nada do que possui é seu. “Eu digo que a coleção é minha como isto [o parlamento] é meu”, afirmou em 2019.

Aqui, é fundamental distinguir várias coisas diferentes: a Fundação José Berardo, fundada em 1988, é a principal devedora da CGD; a Associação Coleção Berardo é a proprietária do espólio do colecionador; a Fundação de Arte Moderna e Contemporânea - Coleção Berardo (ou simplesmente Fundação Coleção Berardo) foi fundada em 2007 e é a empresa de Berardo que possuiu as obras de arte no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, tendo como fundadores Berardo, a Associação Coleção Berardo, a Fundação Centro Cultural de Belém e o Estado português.

Existe ainda a 'holding' Metalgest, através da qual Berardo contraiu alguns dos primeiros empréstimos da Caixa.

As obras de arte foram sendo dadas como garantias aos credores, especialmente à CGD e ao BES - essencialmente, 75% das posses da Associação Coleção Berardo. Mas Joe Berardo fundamentou que a garantia dada aos bancos são títulos de participação na Associação Coleção Berardo, e não as obras de arte em si. E como não foi feita uma avaliação ao valor das obras, não se sabe o real valor das garantidas dadas aos credores.

A sua coleção foi considerada pelo The Independent como uma "das melhores coleções privadas da Europa, superior à de Guggenheim". O Museu Berardo de Arte Moderna e Contemporânea, que está no CCB, em Lisboa, já emprestou obras para exposições no Georges Pompidou (Paris), MoMa (Nova Iorque), Museu Rainha Sofia (Madrid), entre outros conceituados espaços.

Vamos às casas de luxo - estas não podem faltar quando se fala de multimilionários.

A Quinta da Bacalhoa, uma mansão renascentista em Azeitão, também não pertence a Berardo. Pertence à Fundação José Berardo, através da JP Vinhos. A quinta é uma das maiores empresas vinícolas do país.

Berardo tem duas casas de luxo, e as duas foram arrestadas depois de contornada a questão de quem é o proprietário real. O empresário tem um edifício na Lapa, que vale 1,5 milhões de euros. Tem ainda um apartamento na avenida Infante Santo, em Lisboa, onde vive, avaliado em 2,5 milhões de euros.

Nenhuma destas duas últimas proprietárias pertence a Berardo. Pertencem sim à Antram, uma sociedade imobiliária da qual Berardo é presidente do Conselho de Administração, mas não acionista direto.

A viagem desde o ouro sul-africano até à banca portuguesa

A vida de Berardo é rodeada de mistério. José Manuel Rodrigues Berardo nasceu no Funchal em 1944, o mais novo de sete irmãos.

Mudou-se da Madeira para a África do Sul. Mudou-se de José para Joe. E é quando ainda era um adolescente no extremo sul do continente Africano que começou a vida de investimentos.

“Uns 'call me' José Manuel, outros 'call me' Joe, outros 'call me' comendador. A minha família 'call me' José Manuel, o meu irmão, a minha irmã, os meus sobrinhos; estavam habituados desde pequenos. Quando fui para a África do Sul disseram-me que José Manuel não dava. So, call me Joe. I know who I am. A minha mulher chama-me Joe, que ela nasceu na África do Sul”, disse numa entrevista à revista Caras, em 2011.

Berardo conta que foi em Joanesburgo que começou a pensar em investir em arte. Começou os seus negócios a investir nas minas de ouro, e depois passou para o negócio dos diamantes, mas com a queda iminente do apartheid na África do Sul, José 'Joe' Berardo sai.

Mas não sai sem antes dizer à Visão, em 1986, a sua opinião sobre a queda da política racista e segregacionista do país: "Os negros terão de ser ensinados pelos brancos antes de terem o direito de partilhar o poder”.

Sai da África do Sul, volta ao país de nascença e investe em Portugal. Investe em hotéis na Madeira. Investe na Madeirense de Tabacos. Investe também no mundo da comunicação social, primeiro no jornal Record e depois na SIC. Passa depois para a Portugal Telecom e tornou-se no quarto maior acionista do BCP.

Em 2007, Joe Berardo tinha uma fortuna avaliada em 890 milhões de euros e foi considerado pela revista Exame como o 5.º homem mais rico do país.

Joe Berardo chegou também a investir na Cimpor e no Benfica - tentou lançar uma OPA para ficar com 60% do clube, mas acabou por ficar com apenas 1%.