Crise no SNS. Hospitais têm de recuperar autonomia de recrutamento
18-06-2022 - 12:30
 • Marina Pimentel

O direito à saúde e a crise que está a viver o SNS, com fecho de inúmeros serviços de urgência em todo o país, sobretudo de obstetrícia, por causa da falta de médicos, em debate no Em Nome da Lei.

A resolução da crise no Serviço Nacional de Saúde (SNS) passar por devolver às administrações hospitalares a autonomia de recrutamento que já tiveram. É o que defende Xavier Barreto.

O presidente da Associação de Administradores Hospitalares diz que, em prejuízo do SNS, a ministra da Saúde tem optado, nos últimos três anos, por um recrutamento centralizado, retirando qualquer margem de manobra aos hospitais.

”Nos últimos anos tem sido mais clara esta impossibilidade. Houve um período em que admitiam que essas vagas tivessem um perfil específico, em que nós disséssemos, por exemplo, não queremos só um obstetra, queremos um obstetra que tenha uma diferenciação em procriação medicamente assistida, porque era isso que interessava à estratégia do hospital. Mas nos últimos três anos, isso desapareceu. As vagas são cegas. E o que acontece muitas vezes é que o jovem que nos formámos, em quem investimos, acaba por ter de concorrer para um outro hospital. Ou mesmo migrar para o privado", aponta.

As administrações dos hospitais podem recrutar tarefeiros, mas não médicos para os quadros do SNS. O presidente do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), Jorge Roque da Cunha, admite que metade das urgências são já feitas pelos médicos contratados à tarefa. Aproximar o que ganham uns e outros é uma condição essencial para que o SNS saia da crise em que se encontra.

”Um médico em 40 horas aufere mil e 500 euros líquidos. Um médico empurrado para prestador de serviço aufere esse valor quase numa manhã. E tem um tratamento fiscal completamente diferente. Naturalmente que não estou a culpar os prestadores de serviços . O próprio Estado ficou refém dessa circunstância. Eu não estarei muito longe da verdade se disser que metade das urgências deste país são asseguradas por tarefeiros”, assinala.

A exigência de que todas as horas extraordinárias dos médicos do quadro do SNS sejam pagos pelo valor recebido pelos tarefeiros é uma das três condições colocadas pelo SIM, na contraproposta que apresentou à Ministra da Saúde. Jorge Roque da Cunha diz que o sindicato exige também que seja uma solução permanente, e não apenas para os meses de Verão, e que não tenha como teto os patamares de horas fixados para 2019.

Três razões para a crise no SNS


Para o antigo ministro da saúde socialista Correia de Campos, a crise no SNS é um acumular de três fatores silenciosos, embora documentados por estudos. Correia de Campos começa por falar em razões demográficas: a entrada de 6 mil pessoas para as faculdades de medicina nos anos 70 criou uma bolha de profissionais que agora está envelhecida. A essa realidade há que somar “o surgimento de um setor privado muito bem organizado, e a lenta e prolongada deterioração salarial da função pública”.

O médico e deputado do PSD Ricardo Baptista Leite subscreve o diagnóstico da crise feito por Correia de Campos. Mas diz que é preciso também denunciar a falta de visão do Governo sobre o futuro do SNS.E lembra que “em 2015 o Parlamento aprovou a realização de um inventário dos profissionais da saúde, para permitir um melhor conhecimento do capital humano na saúde, e um melhor planeamento".

"O então Ministro Adalberto Campos Fernandes prometeu que em dezembro de 2017 estaria pronto. Depois a Ministra Marta Temido prometeu ano após anos que o inventário estaria pronto. E nunca esteve pronto. A Marta Temido é como se fosse a CEO de uma empresa, com um orçamento de 11 mil milhões de euros, e que não faz a menor ideia sobre os recursos humanos que lá trabalham", critica.

Ricardo Baptista Leite afirma que “é preciso reconhecer que o atual modelo de gestão do SNS falhou” e que "os problemas que têm surgido com serviços de urgência de obstetrícia provam a inutilidade das Administrações Regionais de Saúde".

“Em janeiro houve uma reunião dos diretores de obstetrícia em que já se tinha dito que neste fim de semana precisamente iria haver problemas. Há seis meses. As Administrações Regionais de Saúde não servem para nada neste momento. Transformaram-se em colossos burocráticos que consomem recursos públicos e não resolvem os problemas", sublinha.

O médico e deputado do PSD diz que "tem de haver coragem" para acabar com o modelo das direções regionais de saúde, "que já funcionaram há 40 anos mas hoje não funcionam".

"Nós temos o modelo das unidades locais de saúde que funcionam numa lógica de base territorial, focando-se na saúde dos cidadãos daquele território e numa articulação entre serviços", acrescenta.

Falta de atratividade e falta de médicos


Para o presidente da Associação dos Administradores Hospitalares o problema não é só a falta da atratividade do SNS para reter os médicos. Xavier Barreto acredita que há falta de médicos em algumas áreas da especialidade. E dá o exemplo dos anestesistas.

”Temos cada vez mais anestesia fora do bloco. As endoscopias são todas com anestesia .Os partos são todos com epidurais. Os anestesistas estão também na consulta da dor. O âmbito de ação do anestesista tem-se vindo a alargar nos últimos anos. E a formação não acompanhou. E o anestesista é um bom exemplo até porque condiciona depois a atividade de uma série de outros especialistas. Repare que alguns deste blocos de partos estão a fechar também por falta de anestesistas porque não há anestesistas para fazer a epidural”, destaca.

Para o antigo ministro da Saúde Correia de Campos a crise que se está a viver no SNS, com o fecho de inúmeros serviços de urgência em todo o país, passa por "atribuir à obstetrícia o estatuto de Centro de Gestão Integrada“ que lhes dá mais liberdade e mais responsabilidade e que permite retribuir os profissionais de saúde pelo desempenho. Mas Correia de Campos reconhece que há um problema agudo imediato que é preciso resolver, que é o do diferencial das horas extraordinárias entre os médicos do SNS e os tarefeiros.

”Podemos todos dizer que os médicos não se movem por critérios materialistas. Mas os critérios materialistas contam também. Todos sabemos. E todos temos de reconhecer o direito de os médicos e os enfermeiros fazerem ponte nos momentos em que a ponte é possível. Se atualmente as administrações têm poderes para contratar tarefeiros, e pagar-lhes em discussão de mercado, segundo me dizem aqui entre os de 35 e os 100 euros, também poderão ter a possibilidade de negociar as horas extraordinárias e contratar o pessoal necessário, caso o centro de gestão integrado não tenha os recursos suficientes. É necessário pensar fora da caixa”, conclui o antigo ministro socialista da Saúde.

O direito à saúde e a crise que está a viver o SNS com fecho de inúmeros serviços de urgência em todo o país, sobretudo de obstetrícia, por causa da falta de médicos, foi o tema em debate no Em Nome da Lei.

A ministra Marta Temido anunciou um plano de contingência de curto prazo, para evitar que se repita nos meses de verão o caos que se verificou na última semana, e que passa por aproximar o valor das horas extraordinárias pagas aos médicos dos quadros que fazem urgências, acima das 150 horas, do valor pago aos tarefeiros. E a meio da semana lançou um concurso, com cerca de mil e 600 vagas, para contratar recém-especialistas.

Numa perspetiva de médio prazo, a ministra que tem a tutela da Saúde anunciou a criação de uma comissão de acompanhamento para a saúde materno infantil, do tipo da que foi criada durante o auge da pandemia, para apoiar a resposta dos cuidados intensivos. Medidas prontamente criticadas pelos profissionais de saúde e pelos partidos da oposição, por não resolverem os problemas estruturais do Serviço Nacional de Saúde.

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