​A civilização começa na penitência
10-07-2020 - 06:50

A contrição, para ser uma verdadeira penitência e um sinal de mudança, não pode ser forçada, não pode ser uma explosão externa; tem de ser uma implosão interna.

Será que ainda faz sentido falar de escravatura no contexto dos EUA? Abolida há mais de século e meio, a escravatura ainda poderá explicar a condição negra nos EUA? E faz sentido derrubar à força as estátuas, as figuras e as bandeiras da velha confederação sulista? O recém-falecido John McCain ajuda na resposta.

Os McCain são uma família poderosa, ligada ao exército. O pai de John foi o comandante em chefe das forças no Vietname. O seu bisavó ou trisavó foi um oficial da confederação durante a guerra civil (1861-1865), ou seja, McCain tinha a sua raiz familiar na confederação esclavagista. É por isso que é tão marcante o momento que agora vou recordar.
Estamos em 2000, primárias do Partido Republicano, entre McCain e Bush II; na Carolina do Sul, um repórter da CBS coloca a McCain uma pergunta que, 20 anos depois, está na ordem do dia: Acha que a bandeira confederada pode continuar a ser hasteada ali no palácio do governador? Constrangido, ele puxa de um papel e lê contraído a resposta preparada pelos assessores. "Sim, acho que sim, há que respeitar o sentimento local de cada estado", etc., etc. Dias depois, McCain faz uma conferência de imprensa histórica onde pede desculpa e diz: "Estou arrependido, li aquele papel porque não quero perder os votos, mas a verdade é que não posso respeitar politicamente os símbolos da confederação, pois a minha lealdade está com os valores da União, dos EUA!"
Eu tenho respeito e interesse literário pelo sofrimento dos meus antepassados que lutaram na guerra do ultramar; mas isso não determina um apoio político ao colonialismo. Passa-se o mesmo com John McCain: ele respeitava os bisavós confederados, mas odiava os seus valores políticos. É este o exemplo.
A bandeira confederada não deve ser queimada por activistas exteriores aos estados sulistas. Deve ser arriada pelos próprios sulistas em actos de contrição idênticos aos de McCain. A contrição, para ser uma verdadeira penitência e um sinal de mudança, não pode ser forçada, não pode ser uma explosão externa; tem de ser uma implosão interna. E há esperança: há dias, o estado do Mississipi arriou a sua velha bandeira confederada. É um início, ou melhor, um reinício. Somos a civilização do recomeço que nasce do ciclo culpa, contrição, perdão.