Uma rua do século XIX num bairro do século XXI
23-04-2018 - 08:00
 • Dina Soares , Joana Bourgard

No dia 22 de maio de 1998, às 18 horas e 18 minutos, Jorge Sampaio, então Presidente da República, declarava aberta a exposição internacional de Lisboa. Vinte anos depois, a Renascença recorda a Expo com 20 histórias da maior intervenção na cidade de Lisboa desde o terramoto de 1755. No primeiro dia, partimos da Rua da Centieira, uma rua do século XIX que, de repente, se viu rodeada por avenidas do século XXI.

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A Rua da Centieira é a Alfama do Parque das Nações. Com prédios que não passam do primeiro andar, muitos em avançado estado de degradação, não se assemelha em nada às vias largas e modernas da freguesia herdeira da Expo 98. E, no entanto, a Rua da Centieira pertence tanto ao Parque das Nações como a imponente Avenida D. João II.

Traçada no século XIX, alberga pátios e vilas operárias, em tempos ocupados por trabalhadores das indústrias que ali existiam: petrolíferas, têxtil, indústria pesada. Na esquina da rua, continua de pé a fachada da UTIC, a União de Transportes para Importação e Comércio. Só que, por detrás da fachada, a fábrica de carrocerias de autocarros foi substituída por um condomínio de luxo.

A indústria já estava moribunda muito antes de a Expo 98 ser sonhada. À volta da rua havia terrenos abandonados, entulho, ruínas. Elvira Costa mora naquela rua há quase meio século. Chegou casada de fresco, com um bebé ao colo. Hoje já tem netos adultos. Foi na Centieira que passou os melhores anos da sua vida, mas não nega que, ali à volta, era tudo muito feio.

Por ali passavam os reis

Ainda mais esquecido está o protagonismo daquela rua enquanto principal via de entrada em Lisboa para quem vinha do norte do país. “Aqui passavam reis”, declara com orgulho Jaime Rodrigues. Jaime foi taxista e polícia. Hoje está reformado. Vamos encontrá-lo ao pé da tasca do senhor Martins, encerrada há uns meses, mas que continua a abrir a porta de serviço para receber os amigos.

António Martins gosta do convívio, mas não tenciona recuperar o negócio. Diz que já não vale a pena. “Antigamente, à volta das seis horas, parecia uma procissão de pessoal a passar das fábricas. Agora, a rua está tipo província”, lamenta o senhor Martins.

O ambiente provinciano ainda reina na Rua da Centieira. A maioria dos habitantes são como família, mas quem chega de novo já não vem com o mesmo espírito. Antónia Balcão, conhecida na rua como “a alentejana” porque veio com os pais do Alentejo quando era muito pequena, lamenta a perda dos laços de vizinhança, numa rua que começa agora a ser descoberta, a entrar na moda e a ficar mais cara. “Eu pago, por esta casa, uma renda que eu já considero alta. Mas os meus vizinhos ali do canto, que vieram para cá há pouco tempo, pagam o dobro por uma casa igual.”

E os que chegaram depois, pagam ainda mais. Os tempos correm de feição para quem quiser vender a sua casa. José Cunha já teve ofertas. “Já me rogaram que vendesse.” José não vendeu. Mas muitos vizinhos aproveitaram para fazer negócio. Há um prédio novo já pronto, outro em construção, um terceiro já tem o terreno limpo e o alvará das obras afixado.

A Centieira já está no mapa

Um único investidor comprou dez casas. Já está construída uma residência para estudantes. Vem outra a caminho. Vinte anos depois da exposição internacional, a Rua da Centieira está finalmente no mapa, o que não acontecia quando Adriano Luís lá chegou, pela primeira vez, nos anos 60, vindo de Resende, perto de Viseu. “Eu queria vir aqui para o número 37, para o 1º esquerdo, mas ninguém me sabia dizer onde ficava esta rua”, recorda um dos mais antigos habitantes da Centieira.

Nessa altura, lembra Ismael Custódio, o único ponto de referência da rua era a Náutica, um bar de má fama. “Era uma casa de mulheres e de vida. Só lá ia quem tinha dinheiro, quem não tinha fugia pelo terraço.” O bar está fechado há muitos anos, mas a fachada, já decrépita, ainda ostenta o seu último nome, “Crystal”.

Nos dias que correm, quem se perde pela Rua da Centieira são os turistas que procuram o Parque das Nações. De vez em quando, Antónia Balcão é abordada na rua com perguntas sobre a localização do Oceanário ou o melhor caminho para o centro comercial Vasco da Gama. “Eles acham graça, veem esta rua e perguntam se isto é o fim e eu digo que sim. É o fim de Lisboa. Ali à frente já é Moscavide”, remata Antónia com uma gargalhada.