​A auto-referencialidade no jornalismo e na cultura
05-12-2016 - 08:00

Não é rigoroso fazer das redes sociais e particularmente do Facebook o agente primordial da multiplicação de notícias falsas ou de meias verdades.

Ao escolher como palavra do ano de 2016 o termo “pós-verdade”, a empresa Oxford Dictionaries deu nome a um fenómeno que se exacerbou nos últimos meses, com o Brexit, no Reino Unido, e a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos da América. Esse fenómeno pode caracterizar-se pela diluição de fronteiras entre a realidade e a ficção, que o mesmo é dizer entre a verdade e a mentira. Os referenciais (gostos, interesses, causas, opiniões, crenças) do mundo de cada um, de cada grupo ou tribo são tomados como critério de verdade, mesmo que a verdade dos factos os contradigam.

Não é rigoroso fazer das redes sociais e particularmente do Facebook o agente primordial da multiplicação de notícias falsas ou de meias verdades. Essa lógica do ‘bode expiatório’ permite encontrar explicações rápidas, mas leva a esquecer que as últimas décadas têm assistido, no próprio jornalismo instituído, a um resvalar permanente para a diluição das fronteiras entre jornalismo e o entretenimento, o espectáculo, o comércio de interesses e de ideologias.

Para usar um conceito caro ao Papa Francisco, o jornalismo parece hoje de um gravíssimo problema de auto-referencialidade. E isto acontece porque tem esquecido quais são os seus valores fundacionais – a prestação de um serviço a todos os cidadãos, pautado pela verdade e pela verificação dos factos. Mas também se deve dizer que a auto-referencialidade se tornou hoje um problema da vida social e cultural, configurando o quotidiano e os estilos de vida.

A equivalência entre facto e ficção e entre verdadeiro e falso representa um risco preocupante para o futuro das nossas sociedades, como bem analisou Hannah Arendt em “As origens do totalitarismo”. E isto tanto na vida política e cultural como no jornalismo.

Neste contexto, nunca foi tão necessário como hoje quer o trabalho competente de quem filtra, pesquisa e verifica a informação que circula no espaço público, dando aos cidadãos os instrumentos que lhes permitam avaliar o grau de fiabilidade da informação que recebem. Mas também nunca como hoje foi tão fundamental a preparação de cidadãos capazes de verificar a fiabilidade e consistência dessa mesma informação. O movimento tem de partir dos dois lados e sem qualquer deles, o espaço público fica coxo e definha.