O segundo Vietname americano
22-03-2023 - 06:00

O Iraque pós-Sadam, de onde vêm, afinal, tantos dos problemas do Médio Oriente atual, pode comparar-se quase a um segundo Vietname.

À medida que o mundo se vai tornando mais perigoso, os analistas e historiadores procuram quadros temporais que contextualizem a nossa era. Por estes dias, passaram 20 anos sobre um acontecimento cujos efeitos, muito diversos, se prolongaram no tempo até hoje. Foi na madrugada de 20 de março de 2003 que a administração George W. Bush/Dick Cheney deu início à investida militar destinada a depor o sanguinário regime de Sadam Hussein, no Iraque. E nada ficou como dantes…

O ditador iraquiano tornara-se um pária internacional em 1990, aquando da sua invasão do Kuwait, acabando derrotado na 1.ª Guerra do Golfo, com os EUA de Bush pai à cabeça de uma vasta coligação internacional (com apoio, por exemplo, da Arábia Saudita), mandatada pela ONU para repor a legalidade de fronteiros no Médio Oriente. A Casa Branca resistiu a depor Sadam, para não lançar o Iraque numa guerra civil fratricida entre sunitas e xiitas; e ele lá se manteve, embora comprometido a destruir as suas armas não-convencionais e vigiado pela comunidade internacional. Repetidos incumprimentos levaram Clinton a obter do Congresso, em 1998, a luz verde para uma operação de mudança de regime em Bagdad. Os ataques da Al-Qaeda de setembro de 2001 reforçaram esse desiderato, amplificado na forma de uma luta sem quartel de uns EUA feridos contra o “eixo do mal”. Vencidos (mas não convencidos…) os talibãs afegãos, o alvo seguinte foi o Iraque do contumaz Sadam Hussein.

Bush filho quis completar o que o pai não fizera; mas, desta vez, não houve unanimidade internacional, porque Rússia, China, França, Alemanha e outros se opuseram à guerra. E nos Açores, a 16 de março de 2003, Bush, secundado por Blair, Aznar e Durão Barroso, declarou que a intervenção era inevitável. Bagdad rendeu-se em abril de 2003 e Sadam, que andou foragido durante anos, foi capturado, julgado por um tribunal iraquiano e executado. Fim da história? Não: começo de outra.

A reconstrução do Iraque sob administração norte-americana gerou, na verdade, um vazio de poder e uma sangrenta guerra civil, entre o entrincheiramento dos “dadores da democracia”, em Bagdad, e um território entregue a batalhas entre xiitas e sunitas, onde a Al-Qaeda recrutou e onde o autoproclamado Estado Islâmico veio a medrar. O facto de alguns indicadores socioeconómicos terem melhorado – e de o Iraque ser hoje um país mais livre do que no tempo de Sadam – mal compensa a realidade de ser também um Estado semidestruído por endémicos conflitos internos (que a instabilidade das «Primaveras Árabes» entretanto agravou), e semiperdido, na ótica ocidental, para o fundamentalismo xiita que está a hegemonizar o Médio Oriente.

Deveria Sadam ter sido deposto? Sim, mas em 1991, quando o mandato internacional para a Guerra do Golfo o justificava. Em 2003 e nos anos seguintes, o pretexto das armas de destruição maciças (afinal nunca encontradas) tornou a 2.ª Guerra do Golfo muito mais polémica e odiosa para o prestígio internacional dos EUA.

O Iraque pós-Sadam, de onde vêm, afinal, tantos dos problemas do Médio Oriente atual, pode, assim, comparar-se quase a um segundo Vietname: houve deficiente perceção do inimigo (Bin Laden e Sadam tinham mais diferenças do que semelhanças), ilusão pelas facilidades militares iniciais, arrastamento do processo de reconstrução, tornado um sugadouro de recursos, homens e prestígio e, por tudo isso, perda do precioso “timing” de saída, porque não se pode abandonar o caos e o caos não se deixa organizar. É verdade que Bagdad não foi Saigão; mas, tudo visto, hoje, aquela “Saigão” talvez não recorde com especial saudade a libertação de 2003.